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sábado, 25 de junho de 2022

Crónica de Maus Costumes 283

 

Um português na Holanda

O convidado do último programa Em Primeira Pessoa, da Fátima Campos Ferreira, foi o José Rentes de Carvalho. É possível recuperá-lo na RTP play (perdoem-me a publicidade) e ainda há um outro com o Mário Zambujal que também hei de ver, mas falhou-me a oportunidade.

Acredito que se interroguem sobre a personalidade referenciada. Por um mero acaso, tropecei com o Rentes de Carvalho há uns anos, num artigo qualquer de uma revista, nome da cultura portuguesa que também me era desconhecido, na altura. Não desta vez, pelo que quando me veio parar o alarme da entrevista, logo soube que a veria.

                José Rentes de Carvalho é um escritor português talvez ainda desconhecido da maioria. É um senhor de noventa e dois anos com uma memória fresca e que dizia, na entrevista, ter uma memória enorme, boa, e que era um horror…

Passou a sua infância em Gaia, mas as suas origens pertencem ao Nordeste Transmontano profundo: Estevais, uma pequeníssima aldeia de Mogadouro, onde o cemitério velho é o exemplo da simplicidade e da pobreza. As lápides são pedras irregulares, sem nomes nem epitáfios nem pedras tumulares. Dizia ele à Fátima, a jornalista, que não encontraria cemitério mais pobre… E eu achei o mais belo, precisamente, pela singeleza. Os jazigos, nalguns casos, capelas, dos cemitérios transtornam-me… Como se houvesse alguma riqueza na morte ou fizesse diferença estar depositado numa capela, no esquifo mais fraco ou no de melhor material, se num jazigo ou campa rasa ou até gaveta, com a cremação tão em voga… Tudo um horror… Por isso, ver um chão plano e um pedra mal-amanhada a indicar onde fica a cabeça dos mortos, parece-me suficiente. No final, de uma forma ou de outra não sobrará nada… E se em vez da pedra fosse uma árvore, tanto melhor… Dizia ele que os mortos, ali, eram embrulhados na mortalha e lançados à cova, sem mais. Não havia dinheiro sobrava miséria.

Rentes de Carvalho é desse tempo difícil da fome, do comboio que passava a Carviçais e, nesta passagem, sorri… Conheci a antiga linha, já naquele tempo da minha infância desativada, mas ainda permaneciam os carris. Agora nem isso…

Carviçais era a terra da minha professora primária, a D. Esperança, colega e amiga da minha mãe. De modo que lá fomos passar uns fins de semana, com a Dona Maria e o senhor Ferreira, os pais da minha professora, que tinham terras de cultivo. Foi aí, a caminho de umas terras que os senhores faziam, que quatro ou cinco crianças montadas na “burrica”, ao descer da encosta íngreme, desequilibraram-se e bateram com os costados no chão. Eu era uma delas…

A linha e o comboio traziam as novidades da cidade e os habitantes originários das aldeias. Rentes de carvalho era um deles. Mais velho passou por Lisboa, por Paris, pelo Brasil, tendo-se fixado na Holanda, em Amesterdão, desde 1956, onde lecionou Literatura Portuguesa e Brasileira. Rentes de Carvalho esteve quarenta anos sem ser reeditado em Portugal e, no entanto, é reputadíssimo na Holanda. Admirado pela rainha holandesa, tendo-se atrevido a retratar o povo com quem vive no seu livro intitulado Com os Holandeses. Não se sente estranho nessas terras, mas sente-se “tão português que dói”, como ele diz.

Do país guarda a mágoa de ser primeiro editado em língua estranha e que não é a sua materna, que tanto ama! Senti-lhe a voz húmida e embargada ao falar do descaso que o país fez de si. É a Estevais que vai buscar o material para as suas narrativas. Passa agora metade do tempo na Holanda e outra metade na aldeia portuguesa. Em “Ernestina” narra a aldeia com crueza e com linguagem descarnada. Não se vê o “reino maravilhoso” de Torga nem a infância mítica, mas uma “terra do demo”, onde Judas perdeu as botas, onde se vive entre a vontade de sair e o desejo de ficar, onde se vive com a necessidade de deixar o deserto e a miséria para trás, mas não se consegue, porque eles saem juntamente, agarrados à pele. As personagens cruas, brutas, formadas com o rigor e a dureza do enxadão e da paisagem montanhosa e seca não são absolvidas. Um retrato duro e cru, trazido de novo aos portugueses pela Quetzal, com a ajuda do flaviense Francisco José Viegas.

Um escritor a desvendar, antes que ele se apague. Aqui fica um excerto:

 

“Teria sido mais fácil refilar contra Portugal inteiro, do que ver-me a braços com a própria carne, a minha gente, as dores que escondemos, o mal e o bem que traz esta maneira transmontana, tão nossa, toda de repentes, dilacerados desde o berço entre o carinho e a fúria, a ânsia de partir e a praga de ficar, a liberdade e a prisão”.

 

Nina M.

 

 

 

 

 

 

 

 

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