Um português
na Holanda
O
convidado do último programa Em Primeira
Pessoa, da Fátima Campos Ferreira, foi o José Rentes de Carvalho. É
possível recuperá-lo na RTP play (perdoem-me a publicidade) e ainda há um outro
com o Mário Zambujal que também hei de ver, mas falhou-me a oportunidade.
Acredito
que se interroguem sobre a personalidade referenciada. Por um mero acaso,
tropecei com o Rentes de Carvalho há uns anos, num artigo qualquer de uma
revista, nome da cultura portuguesa que também me era desconhecido, na altura.
Não desta vez, pelo que quando me veio parar o alarme da entrevista, logo soube
que a veria.
José Rentes de Carvalho é um escritor
português talvez ainda desconhecido da maioria. É um senhor de noventa e dois
anos com uma memória fresca e que dizia, na entrevista, ter uma memória enorme,
boa, e que era um horror…
Passou
a sua infância em Gaia, mas as suas origens pertencem ao Nordeste Transmontano
profundo: Estevais, uma pequeníssima aldeia de Mogadouro, onde o cemitério
velho é o exemplo da simplicidade e da pobreza. As lápides são pedras
irregulares, sem nomes nem epitáfios nem pedras tumulares. Dizia ele à Fátima,
a jornalista, que não encontraria cemitério mais pobre… E eu achei o mais belo,
precisamente, pela singeleza. Os jazigos, nalguns casos, capelas, dos
cemitérios transtornam-me… Como se houvesse alguma riqueza na morte ou fizesse
diferença estar depositado numa capela, no esquifo mais fraco ou no de melhor
material, se num jazigo ou campa rasa ou até gaveta, com a cremação tão em
voga… Tudo um horror… Por isso, ver um chão plano e um pedra mal-amanhada a
indicar onde fica a cabeça dos mortos, parece-me suficiente. No final, de uma
forma ou de outra não sobrará nada… E se em vez da pedra fosse uma árvore, tanto
melhor… Dizia ele que os mortos, ali, eram embrulhados na mortalha e lançados à
cova, sem mais. Não havia dinheiro sobrava miséria.
Rentes
de Carvalho é desse tempo difícil da fome, do comboio que passava a Carviçais
e, nesta passagem, sorri… Conheci a antiga linha, já naquele tempo da minha
infância desativada, mas ainda permaneciam os carris. Agora nem isso…
Carviçais
era a terra da minha professora primária, a D. Esperança, colega e amiga da
minha mãe. De modo que lá fomos passar uns fins de semana, com a Dona Maria e o
senhor Ferreira, os pais da minha professora, que tinham terras de cultivo. Foi
aí, a caminho de umas terras que os senhores faziam, que quatro ou cinco
crianças montadas na “burrica”, ao descer da encosta íngreme,
desequilibraram-se e bateram com os costados no chão. Eu era uma delas…
A
linha e o comboio traziam as novidades da cidade e os habitantes originários
das aldeias. Rentes de carvalho era um deles. Mais velho passou por Lisboa, por
Paris, pelo Brasil, tendo-se fixado na Holanda, em Amesterdão, desde 1956, onde
lecionou Literatura Portuguesa e Brasileira. Rentes de Carvalho esteve quarenta
anos sem ser reeditado em Portugal e, no entanto, é reputadíssimo na Holanda.
Admirado pela rainha holandesa, tendo-se atrevido a retratar o povo com quem
vive no seu livro intitulado Com os
Holandeses. Não se sente estranho nessas terras, mas sente-se “tão
português que dói”, como ele diz.
Do
país guarda a mágoa de ser primeiro editado em língua estranha e que não é a
sua materna, que tanto ama! Senti-lhe a voz húmida e embargada ao falar do
descaso que o país fez de si. É a Estevais que vai buscar o material para as
suas narrativas. Passa agora metade do tempo na Holanda e outra metade na
aldeia portuguesa. Em “Ernestina” narra a aldeia com crueza e com linguagem
descarnada. Não se vê o “reino maravilhoso” de Torga nem a infância mítica, mas
uma “terra do demo”, onde Judas perdeu as botas, onde se vive entre a vontade
de sair e o desejo de ficar, onde se vive com a necessidade de deixar o deserto
e a miséria para trás, mas não se consegue, porque eles saem juntamente,
agarrados à pele. As personagens cruas, brutas, formadas com o rigor e a dureza
do enxadão e da paisagem montanhosa e seca não são absolvidas. Um retrato duro e
cru, trazido de novo aos portugueses pela Quetzal, com a ajuda do flaviense Francisco
José Viegas.
Um escritor
a desvendar, antes que ele se apague. Aqui fica um excerto:
“Teria
sido mais fácil refilar contra Portugal inteiro, do que ver-me a braços com a própria
carne, a minha gente, as dores que escondemos, o mal e o bem que traz esta maneira
transmontana, tão nossa, toda de repentes, dilacerados desde o berço entre o carinho
e a fúria, a ânsia de partir e a praga de ficar, a liberdade e a prisão”.
Nina
M.
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