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sábado, 15 de janeiro de 2022

Crónica de Maus Costumes 261

 Pós-modernidade e absurdo

            Preocupa-me esta era pós-moderna em que o absurdo e o insólito convivem com o melhor que o homem tem para oferecer. De certa forma, continuo a espantar-me. Talvez não consiga varrer alguma ingenuidade que possa ainda permanecer, apesar do desassombro com que olho o mundo.
            Num destes dias, dizia-me alguém que não se atrevia a tecer críticas à atuação política de um autarca, porque quando se sentem acossados mordem as canelas dos que os confrontam com as suas debilidades. Tratava-se de quem se tratava, mas que se fosse de outra cor política seria a mesma coisa, já que os senhores não gostam do confronto político, mesmo que seja feito com um sentido crítico positivo. As minhas entranhas abalaram e a prova é a de que ando há, sensivelmente, uma semana a remoer o assunto e sem que eu queira ou procure, as palavras ecoam no meu pensamento. A questão que se entranha no meu espírito é a de saber se caminhamos para os quarenta e oito anos de democracia para chegarmos a isto, ou seja, para que as pessoas não se sintam livres de dizer o que pensam, com receio de desagradar o poder, por medo de represálias que podem trazer consequências na vida profissional. Ora, este não é o espírito de abril, muito menos para um autarca que pertence a um partido que tanto se orgulha e com tanto esmero fala de abril, não abdicando, e bem, de celebrar com pompa e circunstância a data que marca a devolução da liberdade aos portugueses. Significa que o verdadeiro espírito e a verdadeira aceitação da democracia ainda não fazem parte do ADN do povo português. Se assim fosse, aqueles que detêm o poder executivo saberiam ouvir e acolher opiniões diferentes. Obviamente, em última instância, a decisão é sempre do responsável máximo, para isso foi eleito, mas tem também o dever de ouvir com espírito aberto e sem má-fé as considerações alheias, analisá-las e caso se evidenciem úteis, saber acolhê-las. A capacidade de ouvir serenamente as críticas que lhe são dirigidas e de procurar refletir sobre elas é imprescindível a qualquer um que se autodenomine de pessoa democrática. Aqueles que votam e elegem os seus representantes têm o dever de manter um espírito crítico aguçado e interventivo e de se fazerem ouvir, desde que não usem um discurso insultuoso e ofensivo, sem medo, porque o tempo da outra senhora já acabou. Ao que parece a democracia foi instituída, mas é inúmeras vezes comprometida por posturas inaceitáveis e autoritárias. Quem as pratica e quem as engole faz perigar a liberdade.
            A verdade é que culturalmente, o facto de termos tido uma longa ditadura, ainda se faz sentir. Somos um povo que lê pouco (os livros, primeiro, foram queimados na pira inquisitorial e depois censurados e proibidos) e quem não lê pouco conhece e pouco reflete, pelo que pouco reivindica. Não exige respostas de quem governa. Uma república democrática deve ser tratada com respeito por quem a representa e com exigência por parte de quem a defende. Na verdade, o maior aliado dos políticos é um povo ignorante. O problema é mais sério quando as pessoas que têm capacidade crítica e conhecimento se calam por medo das consequências. Se isto se verifica, então, significa que a democracia adoeceu e precisa urgentemente de tratamento para que possa continuar a frutificar. Causa-me o maior transtorno e a maior repugnância, fere-me as entranhas o absurdo de aceitarmos como normal uma retaliação perante uma crítica que possa ser feita. Porém, é esta a realidade em que nos movemos, um absurdo difícil de acomodar.
Constato que alguns políticos portugueses estão demasiado habituados aos seus pequenos feudos, demasiado apegados a pequenos tiques tirânicos, demasiado agarrados a uma vaidade oca que vive da ostentação e que para eles há seres que são mais iguais do que outros. Também não tenho qualquer dúvida de que a democracia ainda é o melhor sistema político e aquele que, apesar dos vícios, ainda oferece garantia de escrutínio. Sejamos nós, cidadãos, exigentes e zelosos do regime que garante a liberdade. Exijamos dos nossos representantes a decência que o país merece, sugiramos que se inspirem no comportamento de alguns dos seus congéneres europeus, no sentido de desempenharem as suas funções com competência e espírito para servir a nação, fazendo jus ao étimo latino da palavra, já que o minister é um servidor, um subordinado.
As gerações mais bem preparadas de sempre não devem ser as menos reivindicativas nem tão pouco as mais alienadas da realidade em que se movem!
 
Nina M.

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