Lembro-me
de Torga e do seu reino maravilhoso. Do quanto lhe fugiu, inicialmente, porque
se viu a isso obrigado para melhorar as suas condições de vida. Depois, já
médico e regressado do Brasil irritava-se com as quezílias simplórias dos seus
habitantes, que se aborreciam por conta do uso da água ou da parede que dividia
o terreno dele da do vizinho. Questões do quotidiano e que são as preocupações
maiores destas gentes que da terra retiram os bens que consomem.
Afligem-lhes
o espírito as surpresas da natureza caprichosa que tanto decide ser cúmplice e
amiga como escolhe ser cruel e com um temporal imprevisto destruir o fruto
acabado de nascer, mas cuidado desde antes da nascença. Perante tanta
adversidade e dureza rude do trabalho, o transmontano desenvolve uma
resiliência descomunal. Ao longo da vida, tem de recomeçar inúmeras vezes por
perder subitamente o que tinha plantado, sem pré-aviso nem complacência. Sabe
da injustiça, mas também está consciente de que nada pode contra a natureza. O
calo das mãos trabalhadas pela enxada aloja-se também no coração, porque dos
fracos não reza a história.
Assim,
estas gentes não têm tempo a perder com questões filosóficas ou metafísicas. A
sua inquietude é a terra que pisam e trabalham, os animais que alimentam e aos
quais são apegados. A inveja maior é verificar o lameiro do vizinho com o pasto
mais verdejante do que o seu e que vai deixar as vacas saciadas e gordas para
vender na feira.
Esta
sabedoria popular ignorante da ciência irritava o escritor. Teve de montar
consultório em Coimbra para sobreviver, mas o tempo e a idade sempre sábia
soube adoçá-lo e era ao seu reino, num regresso às origens, que retemperava
forças e se equilibrava. Era um trabalho interior apreciado e cada vez mais
estimado à medida que envelhecia. Soube perceber a autenticidade dentro de si,
oriundo daquele reino que também a ele lhe havia moldado o caráter,
revestindo-o da mesma dureza das penedias das suas serras.
Acabou
por perceber que a identidade original, franca e genuína, mesmo que por vezes
sisuda e dura, é infinitamente melhor à hipocrisia do mundo citadino, onde há
um código instituído que obriga a um jogo constante e delicado nas relações
humanas. Parido das fragas, Torga recusava-se a adotar um comportamento que lhe
era estranho. A franqueza desbragada impedia-o de jogar no tabuleiro das
influências e, como bom transmontano que afinal era, haveria de triunfar só.
Serviram-lhe
de inspiração para a sua obra as múltiplas personagens conhecidas, com os seus
defeitos e as suas qualidades, registando-as sublimemente nos seus contos, tão
maravilhosos quanto o seu reino, as paisagens agrestes, mas belíssimas de um
Douro imortal que lhe emolduram a poesia. A ele, quem quiser conhecê-lo melhor,
sorva deliciado as páginas de Criação do
Mundo e deleite-se.
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