Há dias horríveis para serem vividos
Propositadamente, deixei passar o
tempo. Não liguei a televisão, nesses dias. Normalmente, não ligo e assim me
mantive. O que me chegou foi, essencialmente, através das redes sociais, cada
vez mais escabrosas, cada vez mais usadas para que pessoas desassossegadas
desassosseguem outros, entendendo que podem maltratar a torto e a direito, que
podem ser juízes sem formação para tal, numa falta de respeito e de voyeurismo
em relação à vida alheia que fere.
Eu quedo-me atónita, interrogando-me.
Questiono, silenciosamente, o motivo que conduz a certas posturas de gente
adulta, sem que parem um segundo para olhar para si mesmas! Gente tão segura de
si e da sua perfeição! Invejável ou talvez não. Foi com gente assim que a
Inquisição e a PIDE se fortaleceram. Gente cheia de si, que não vacila um
segundo e é muito lesta a fazer juízos de valor sobre tudo e sobre todos, mesmo
desconhecendo os contornos e as circunstâncias. Acaso os conheçam… Porventura,
alguém os investiu de derradeiros pilares da moralidade alheia? É com essas
boas intenções que vemos certos países a criarem a polícia da moralidade e dos
bons costumes, que punem mulheres em praça pública por se atreverem a mostrar
os cabelos sedosos e, então, se forem adúlteras, mesmo que seja porque se
apaixonaram e querem sair de um relacionamento para o qual a sua vontade não
foi convocada, são apedrejadas até à morte, pelos próprios pais e irmãos,
nascidos, imagine-se de um ventre de mulher! Isto não é cultura! Isto é a
barbárie e aceitar esta forma medieval de vida, no século XXI, é cair num
relativismo moral ofensivo. Não se indignam as entranhas dos diletos
moralistas, com horror, contra estas situações, mas a alegada ausência de
Cristiano Ronaldo no funeral do amigo serviu para fazer manchetes, explorar
vergonhosamente o que não deveria ser explorado, numa hora de profunda dor que
será eterna para os familiares mais próximos, especialmente, pais, esposa e
filhos.
Procurei não ler grande coisa, mas as
línguas viperinas fizeram-se sentir. Houve três aspetos que me chocaram, para
além da morte extemporânea dos irmãos, que todos entristeceu, até os moralistas
de plantão: primeiro, a oblituração de André Silva. Parecia e continua a
parecer que só o Diogo Jota partiu, quando os pais tiveram a miserabilíssima
dor de perder dois filhos. Para estes pais, independentemente de André ser
menos conhecido, tem o mesmo valor de Diogo. A dor é a mesma. É muita. É
irrazoável. É eterna. Escrevo isto com os olhos rasos de água. Vi o sofrimento
de uma colega a quem aconteceu o mesmo. Só de pensar que a vida pode ser
madrasta comigo e fazer-me algo parecido, sinto-me falecer. É, portanto, de uma
imbecilidade atroz, de uma falta de sensibilidade tremenda e de uma ambição
cruel e ensejo de mediatismo falar-se constantemente de Jota e esquecer-se
André Silva. O único aspeto positivo disso seria maior sossego para uma
possível companheira, esposa ou namorada de André, que não sei se existe. Em
segundo lugar, o circo mediático que fazem de um momento de dor, com, ao que
parece, as televisões a apontarem as câmaras para o momento das exéquias,
fazendo uma cobertura jornalística integral desse momento, controlando quais os
craques de futebol que marcaram presença e os que não apareceram. Querer
reportar a notícia do funeral seria normal, já não será tão admissível fazer
uma cobertura das 10h00 às 17h00, como se nada mais houvesse para dar a
conhecer… Só por mera coincidência, iniciava-se também o julgamento de José
Sócrates. Um momento de recolhimento, em que a família precisa de silêncio,
assiste-se à exploração da dor ad nauseam. Por último, o julgamento
imediato de Cristiano Ronaldo por, alegadamente, não ter comparecido. O rapaz
foi crucificado instantaneamente. O pior é que Ronaldo seria castigado de ambas
as formas. Se tivesse comparecido e houvesse gente falha de juízo (e não falta
por aí) ainda invadiriam as cerimónias para arrancar autógrafos e fotografias
ao capitão. A própria imprensa haveria de o aborrecer até conseguir umas
declarações. Logo, se o fizesse, seria um egoísta, um vaidoso que foi retirar
as atenções e a justa homenagem aos
irmãos. Como não compareceu, as críticas surgiram do mesmo modo. É um vaidoso,
um arrogante, demonstrou falta de respeito e por aí fora. Até houve aqueles que
sugeriam, quais justiceiros encarniçados, a imediata retirada da braçadeira ao
capitão. Se Jota estiver assistir a este circo, levará as mãos à cabeça pelo
disparate e, sobretudo, pelo facto de as pessoas não perceberem que, neste
momento, a única coisa que importa é a dor inconsolável dos seus! Que diabo! É
assim tão difícil de compreender isto? Alguém sabe das razões de Ronaldo?
Alguém sabe o que ele combinou e conversou com a família de Jota?! Metam-se na
vossa vidinha e deixem de ser coscuvilheiros!
Para terminar a minha indignação
perante certos comportamentos, lembro que quando a dor é profunda, ninguém quer
saber quem está ou deixou de estar no funeral! Tantas vezes as pessoas
medicadas, anestesiadas, num cenário de morte inesperada, nem se apercebem das
presenças. Muitas vezes, isso é o mais dispensável. A verdadeira cruz da
família começa agora. A partir daqui, a presença dos mais íntimos é a
indispensável e esta só a eles diz respeito. Não têm de o relatar publicamente.
É inadmissível o assassinato de caráter que se faz nas redes sociais com a
complacência da comunicação social e a falta de inteligência emocional de uma
boa parte que gosta de opinar!
Ao olhar para isto, percebo a bênção
do anonimato. Respiro fundo.
Nina M.
Sem comentários:
Enviar um comentário