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sábado, 12 de julho de 2025

Crónica de Maus Costumes 429

 

Há dias horríveis para serem vividos

 

Propositadamente, deixei passar o tempo. Não liguei a televisão, nesses dias. Normalmente, não ligo e assim me mantive. O que me chegou foi, essencialmente, através das redes sociais, cada vez mais escabrosas, cada vez mais usadas para que pessoas desassossegadas desassosseguem outros, entendendo que podem maltratar a torto e a direito, que podem ser juízes sem formação para tal, numa falta de respeito e de voyeurismo em relação à vida alheia que fere.

Eu quedo-me atónita, interrogando-me. Questiono, silenciosamente, o motivo que conduz a certas posturas de gente adulta, sem que parem um segundo para olhar para si mesmas! Gente tão segura de si e da sua perfeição! Invejável ou talvez não. Foi com gente assim que a Inquisição e a PIDE se fortaleceram. Gente cheia de si, que não vacila um segundo e é muito lesta a fazer juízos de valor sobre tudo e sobre todos, mesmo desconhecendo os contornos e as circunstâncias. Acaso os conheçam… Porventura, alguém os investiu de derradeiros pilares da moralidade alheia? É com essas boas intenções que vemos certos países a criarem a polícia da moralidade e dos bons costumes, que punem mulheres em praça pública por se atreverem a mostrar os cabelos sedosos e, então, se forem adúlteras, mesmo que seja porque se apaixonaram e querem sair de um relacionamento para o qual a sua vontade não foi convocada, são apedrejadas até à morte, pelos próprios pais e irmãos, nascidos, imagine-se de um ventre de mulher! Isto não é cultura! Isto é a barbárie e aceitar esta forma medieval de vida, no século XXI, é cair num relativismo moral ofensivo. Não se indignam as entranhas dos diletos moralistas, com horror, contra estas situações, mas a alegada ausência de Cristiano Ronaldo no funeral do amigo serviu para fazer manchetes, explorar vergonhosamente o que não deveria ser explorado, numa hora de profunda dor que será eterna para os familiares mais próximos, especialmente, pais, esposa e filhos.

Procurei não ler grande coisa, mas as línguas viperinas fizeram-se sentir. Houve três aspetos que me chocaram, para além da morte extemporânea dos irmãos, que todos entristeceu, até os moralistas de plantão: primeiro, a oblituração de André Silva. Parecia e continua a parecer que só o Diogo Jota partiu, quando os pais tiveram a miserabilíssima dor de perder dois filhos. Para estes pais, independentemente de André ser menos conhecido, tem o mesmo valor de Diogo. A dor é a mesma. É muita. É irrazoável. É eterna. Escrevo isto com os olhos rasos de água. Vi o sofrimento de uma colega a quem aconteceu o mesmo. Só de pensar que a vida pode ser madrasta comigo e fazer-me algo parecido, sinto-me falecer. É, portanto, de uma imbecilidade atroz, de uma falta de sensibilidade tremenda e de uma ambição cruel e ensejo de mediatismo falar-se constantemente de Jota e esquecer-se André Silva. O único aspeto positivo disso seria maior sossego para uma possível companheira, esposa ou namorada de André, que não sei se existe. Em segundo lugar, o circo mediático que fazem de um momento de dor, com, ao que parece, as televisões a apontarem as câmaras para o momento das exéquias, fazendo uma cobertura jornalística integral desse momento, controlando quais os craques de futebol que marcaram presença e os que não apareceram. Querer reportar a notícia do funeral seria normal, já não será tão admissível fazer uma cobertura das 10h00 às 17h00, como se nada mais houvesse para dar a conhecer… Só por mera coincidência, iniciava-se também o julgamento de José Sócrates. Um momento de recolhimento, em que a família precisa de silêncio, assiste-se à exploração da dor ad nauseam. Por último, o julgamento imediato de Cristiano Ronaldo por, alegadamente, não ter comparecido. O rapaz foi crucificado instantaneamente. O pior é que Ronaldo seria castigado de ambas as formas. Se tivesse comparecido e houvesse gente falha de juízo (e não falta por aí) ainda invadiriam as cerimónias para arrancar autógrafos e fotografias ao capitão. A própria imprensa haveria de o aborrecer até conseguir umas declarações. Logo, se o fizesse, seria um egoísta, um vaidoso que foi retirar as atenções  e a justa homenagem aos irmãos. Como não compareceu, as críticas surgiram do mesmo modo. É um vaidoso, um arrogante, demonstrou falta de respeito e por aí fora. Até houve aqueles que sugeriam, quais justiceiros encarniçados, a imediata retirada da braçadeira ao capitão. Se Jota estiver assistir a este circo, levará as mãos à cabeça pelo disparate e, sobretudo, pelo facto de as pessoas não perceberem que, neste momento, a única coisa que importa é a dor inconsolável dos seus! Que diabo! É assim tão difícil de compreender isto? Alguém sabe das razões de Ronaldo? Alguém sabe o que ele combinou e conversou com a família de Jota?! Metam-se na vossa vidinha e deixem de ser coscuvilheiros!

Para terminar a minha indignação perante certos comportamentos, lembro que quando a dor é profunda, ninguém quer saber quem está ou deixou de estar no funeral! Tantas vezes as pessoas medicadas, anestesiadas, num cenário de morte inesperada, nem se apercebem das presenças. Muitas vezes, isso é o mais dispensável. A verdadeira cruz da família começa agora. A partir daqui, a presença dos mais íntimos é a indispensável e esta só a eles diz respeito. Não têm de o relatar publicamente. É inadmissível o assassinato de caráter que se faz nas redes sociais com a complacência da comunicação social e a falta de inteligência emocional de uma boa parte que gosta de opinar!

Ao olhar para isto, percebo a bênção do anonimato. Respiro fundo.

 

Nina M.

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