Ternuras interrompidas
Amanhã, é Páscoa. Preferia que a
crónica de hoje fosse para recordar a minha saudosa tia que, durante a semana
que antecedia a festividade, fazia às três dezenas de pães de ló para ela, para
os filhos, para a minha mãe, sua irmã, e ainda para as ofertas que todos pretendiam
fazer.
Preferia recordar os tempos em que a
minha tia o batia com canas debaixo dos braços, em alguidares de barro que me
pareciam gigantes, na altura e, no fim, chamava-nos (aos sobrinhos e netos)
para raparmos o alguidar e as canas. Andávamos perdidos em brincadeiras, nas
proximidades, sempre de olho para ver quando chegava a hora da lambarice. Às
vezes também íamos à loja da “Lice”, que deveria ser da “Alice”, mas era assim
que dizíamos, comprar folhas de papel almaço para forrar as formas. Sempre me
admirei pelo facto de o papel resistir ao calor do forno a lenha, sem arder. Invariavelmente,
quando a minha tia retirava as fornadas e levantava a tampa, eis que surgiam as
regueifas no seu esplendor dourado, sempre impecáveis! Amarelinhas, feitas de
ovos caseiros, obrigatoriamente. As mais bonitas eram sempre para oferta. Lá havia
uma ou outra que ficava um bocadinho mais queimada, por cima, e então, essa,
seria para consumo doméstico.
Também poderia recordar o tradicional
passeio de Páscoa em que as mulheres conseguiam meter a casa na mala do carro:
as pingadeiras fartas com o cabrito assado. A minha tia levantava-se às quatro
ou cinco da manhã para acender o forno, assar o anho, as batatas e o arroz de
forno, enquanto preparava pratos, copos e talheres, embalava tudo e ainda fazia
salada. Tudo pronto para que depois da eucaristia pascal, sempre cedo, fosse só
embrulhar a comida em jornais para que se mantivesse quente. Logicamente, ainda
acomodavam mesas e cadeiras! Depois, à hora do almoço, era só encontrar um
lugar arranjadinho onde pudessem montar a tenda!
Os meus filhos que não se lembrem de
me pedir tal! Só de me lembrar da parafernália que carregavam, sentencio, de
imediato, que vale mais comer no sossego do lar… Não sou grande fã de
piqueniques… Se é para levar farnel, uma sandocha está otimamente bem! Detesto
tralha atrás de mim! Mas as mulheres davam-se a essas trabalheiras e eram
admiráveis!...
Portanto, a crónica tinha tudo para
ser a recuperação de boas memórias e um belo motivo para evocar a minha tia
(aquela que nunca precisou de nome, porque todos sabemos a quem nos referimos,
aquela que herdou o lugar da avó Matilde), aquela de quem todos os sobrinhos
gostavam, sem exceção, e de quem todos, estou certa disso, se lembram. E isto é
o mais importante quando deixamos de estar cá. As memórias que deixamos aos
outros e a saudade. E se quando nos lembramos das pessoas, um sorriso aflora aos
nossos lábios, esse ser conquistou a eternidade nos nossos corações. A minha
tia é, por isso, eterna, como é a avó Matilde e o avô Tónio, cujas memórias são
mais ténues, por ser o meu primeiro morto, tinha eu cinco anos…
O Trump e os seus cães de fila quiseram
estragar a ternura da minha crónica, porque não posso deixar de lavar a alma e
de alertar para certos perigos, afinal, tal como a azémola do JD Vance anunciou:
os professores são o inimigo. Não sou professora em Harvard nem em qualquer
universidade, mas se vier a propósito, também eu explico aos alunos o que é um
estado democrático e um estado de direito. É aquilo com que Trump pretende
acabar. Para os mais distraídos, um estado democrático caracteriza-se pela
separação de poderes: legislativo, executivo e judicial. Significa que nenhum
presidente pode passar por cima do poder judicial, mas foi isso que Trump fez
ao não acatar a deliberação de um juiz, no sentido de suspender as deportações
ilegais que estavam a acontecer. Num país, há leis e nem o presidente está
acima delas, mas parece que Trump se coloca nesse patamar. O energúmeno tem a desfaçatez
de atirar com a justificação falaciosa de que foi eleito, enquanto o juiz não
foi escolhido pelo povo. Ora vamos cá ver… Ninguém elege um presidente para que
este não respeite o direito democrático de um país. Se a ordem de um tribunal
não permite determinado ato, de acordo com a legislação em vigor, o máximo que alguém
poderá fazer é recorrer da sentença, não é fazer de conta que ela não existe!
Não sei se os americanos estão cientes do que isso significa! Todos os totalitarismos
começam desta forma, com presidentes que se acham acima da lei e que esta é
aquilo que entendem que deva ser. Foi assim com Salazar, com Franco, com
Hitler, Com Mussolini, com Chávez, com Maduro, com Putin… Com Trump! Outro
sinal gravíssimo é a tentativa de moldar pensamento e de perseguir aqueles que
não leem a mesma cartilha. As Universidades querem-se de pensamento livre,
diverso e plural, sem pressões do Estado, no sentido de induzir o pensamento
único. Sempre foi assim e, neste momento, os verdadeiros republicanos só podem
estar envergonhados. Os democratas acredito que se sintam revoltados e
angustiados, os republicanos funcionais só podem sentir vergonha alheia! As
Universidades não se vergaram e ainda bem! Ao que parece, 75% dos intelectuais
que fazem investigação nos Estados Unidos da América afirmam querer abandonar o
país, tal é a falta de decoro do presidente e dos que o rodeiam. Eu acho que
fazem muito bem e tenho a certeza de que a Europa os acolherá com muita
satisfação! Se os Estados Unidos da América são pioneiros em muitas matérias,
devem-no aos seus investigadores e cientistas! São eles o progresso, o
desenvolvimento e o enriquecimento de um país! Não compreender isto é ser-se de
uma ignorância sem limites e confrangedora!
Eu esfrego as mãos de satisfeita,
porque creio que a Europa só terá a ganhar com essa migração. No século XXI
acontece o inverso do que foi no século XX: a inteligência europeia mudou-se
para os Estados Unidos por força dos regimes totalitários. Atualmente, o
movimento será ao contrário.
Provavelmente, haverá uma recessão
económica se Trump insistir nestas guerras comerciais. A fatura será paga pelo
cidadão americano, quer tenha ou não votado no narcisista que ocupa a Casa
Branca. Talvez não seja mau, porque a única forma de o travar é através da
implosão e esta só se dará com uma forte queda na economia, quando os
americanos derem conta do aumento substancial do custo de vida, já que esse
povo só conhece a cor do dinheiro. Não deixam de me espantar os que elegem
alguém que promove uma invasão ao Capitólio, ação que causou a morte de alguns;
alguém que se acha no direito de não cumprir a lei do país; alguém que apresenta
discursos imperialistas e expansionistas inaceitáveis, com ideias de jerico com
a mania de que é cavalo; alguém que apresenta comportamentos persecutórios face
à elite intelectual do seu país… Tenho esperança que caia e será ele mesmo, com
as suas ações, a implodir o Governo. Até lá, o mundo sofre, mas os americanos
sofrerão mais. Talvez precisem de aprender com a experiência, já que parecem
ignorar todos os sinais de alerta há muito escancarados!
Uma Santa Páscoa para todos!
Nina M.
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