Um par de
meias de lã
Escrevo em modo confortável. Antes de
me sentar, visto o pijamas e calço as meias de lã que impedem que os pés arrefeçam.
Olho-as. São industriais. Ainda assim recordam-me a minha avó.
Ela tricotava
meias e aproveitava o resto dos novelos, no tempo em que as mães tricotavam as
camisolas dos filhos, à noite, depois de jantar (que era sempre cedo) e de
arrumar a cozinha. Agarravam nas agulhas e lá estavam um pedaço entretidas, com
o fio sobre o pescoço, numa espécie de jugo, e o pedaço feito de camisola a
escorregar-lhes sobre o regaço. Enfiavam as malhas cada vez mais apertadas pelo
peso, com as agulhas pontiagudas e pesadas, num movimento sincopado e síncrono,
quase automático. Nem precisavam de olhar, que a agulha sabia o caminho. Enfia
a agulha direita na malha da esquerda, dá a laçada com a ajuda do polegar e
puxa, a fazer mais uma malha, ponto de meia. Todas as mães sabiam fazer isto de
cor, enquanto viam a Gabriela ou a Vila Faia. Quase todas as minhas camisolas
foram feitas assim… Lembro-me particularmente de uma em tons de rosa velho, com
tranças, um casaco branco-sujo, que formava umas rosinhas em relevo, trabalho
minucioso e difícil, e de uma vermelha com uma girafa, dentro de uma cerca. Se
não estou enganada, esta foi feita pela minha professora, amiga da mãe, a Dona Esperança.
Estes trabalhos mais difíceis e minuciosos de contar malhas e meter outras cores
pelo meio, na construção de um desenho específico seriam, talvez, mais difíceis
para a minha mãe, que se lamentava da falta de jeito. A minha tia, também ela
tinha aprendido o ofício de tecedeira com a mãe, minha avó, lia esses esquemas
com muita facilidade. Habituada a montar teias não seriam as malhas que a
atrapalhavam…
Eu ainda
aprendi a tricotar e a fazer ponto de pé e o croché, por insistência da avó,
para quem as meninas deveriam ser prendadas e saber essas coisas e costura
também… Mas… Não sei que diga… Nunca gostei nem tive paciência para esses lavores…
Não me davam prazer nenhum… Depois de muita insistência, lá me arranjaram um
farrapo com uma maçã passada a químico, que a muito custo bordei em ponto de pé
e acho que já nem sei fazer… Eu queria lá saber do bordado… Preferia andar a
correr pelos montes, perdida nas brincadeiras, a trepar os castelos de madeira
ou a brincar às casinhas com as vizinhas. A partir de certo momento, pararam de
insistir nessas ideias… Eu sempre achei que não iria precisar de saber isso
para nada… Ou perceberam que não valia a pena a insistência, que ali não havia
lura de onde saísse coelho… É assim até hoje.
De modo que a minha avó Matilde fazia
o aproveitamento das lãs que sobravam das camisolas para fazer meias que
aqueciam bem os pés no inverno. De alguma maneira, devemos ter chegado a um
acordo tácito: nem ela me ensinava a tricotar nem eu insistia com a minha ideia
de a ensinar a ler, porque ela sempre me dizia: “Ó filha! Agora não vale a pena!
Burro velho não toma andadura!”
Ocorre-me, agora, de repente, que não
me lembro de ver a minha avó a rir! Nunca a vi a rir, mas ouvia-lhe amiúde que “muito
riso pouco siso!” Era uma mulher austera e de poucas falas. Comunicava o indispensável.
Tinha a sabedoria de intuir que as palavras não devem ser desperdiçadas à toa. Não
permitia a má-língua sobre ninguém, atalhando com um “cada um sabe de si e Deus
de todos”. Todos lhe obedeciam, sem que ela tivesse de falar muito e muito
menos gritar.
Houve um dia um episódio… Não sei
porque me vem, agora, à memória, ou melhor, sei… Eu nunca me desculpei com ela
e nem ela estaria à espera disso. Já não sei o motivo, mas a avó lá não me
deixou fazer alguma coisa, certamente. Sei que eu fiquei muito furiosa, mas
muito enraivecida e no meio da questão, irada, deixei escapar um “também havias
de morrer e de partir as duas pernas”. Assim que me saíram semelhantes palavras,
inundou-me a angústia. Eu não queria nada que ela morresse nem que partisse o
que quer que fosse, mas estava dito e não havia forma de desdizer. A minha avó
lá me repreendeu a perguntar-me se isso era coisa que se desejasse à avó e que
Jesus estaria tristíssimo comigo. Eu teria sete ou oito anitos, não sei
precisar. Muito contrita, fui carpir mágoas, com os olhos rasos de água,
arrependidíssima, porque me pesava a consciência e a alma, a explicar interiormente
a Jesus que não falava a sério e nem sabia como tinha acontecido, mas quando dei
por mim, as palavras já tinham saído.
Não tinha a sorte, na altura, de
conhecer os Evangelhos Apócrifos… Ninguém mos tinha dado a ler nem o professor
Frederico Lourenço tinha feito a sua tradução… Tinha apenas um Novo Testamento
para crianças, cujas parábolas lia e relia e já sabia de cor e salteado.
Juntamente com os livros de “Os Cinco” era o que havia e o que fazia as minhas leituras.
Se eu soubesse que o próprio Jesus, segundo Tomé, em criança, tinha tido as
suas birras e os seus caprichos, ter-me-ia sentido aliviada. Afinal, se o próprio
jesus, irritado, disse a um menino que se esbarrou com ele, indo contra o seu
ombro: “Não continuarás o teu caminho.” Logo o menino caiu e morreu. Ora… Eu
que tinha sido apenas uma imprudente desbocada, sem qualquer poder divino, não
viria mal ao mundo… Claro que a criança divina, depois, desfazia as suas
perrices, mas que as tinha, também, seria certo, pois afirma Tomé: “E ninguém
doravante ousava encolerizá-lo, para que ele o não amaldiçoasse e estropiasse”.
Os meus dez por cento demoníacos
divertem-se imenso com este lado pouco angelical e caprichoso de um Jesus
petiz, que deve ter aprendido a controlar os seus ímpetos. Saber disto, na
altura, ter-me-ia servido de consolo, porque o remorso não me largou até
adormecer, nessa noite. Felizmente, no dia seguinte, eu e a avó já nos tínhamos
esquecido do triste episódio. Não tenho de memória, mas poderei jurar que, no
dia a seguir, terei andado na linha sem a aborrecer muito… Excetuando a hora de
almoço, que era sempre um castigo e que ela me subornava com o que apelidava de
refrescos de vinho. Obviamente, uma gota de vinho, um copo cheio de água e açúcar.
Era doce e eu gostava, mas só podia beber quando terminasse de comer… Demorava
séculos! Nunca tinha fome! Eram os refrescos de vinho da avó e as metades de
pão com açúcar da tia Alexandrina! Já não uso açúcar em nada (com exceção de
bolos) desde os meus vinte e cinco anos, mas aqueles pães da infância, eram um
consolo!
Da avó Matilde tenho uma colcha por
ela tecida e os seus brincos, com que sempre a conheci, sem que nunca os
tivesse tirado. Nem para dormir a avó tirava os brincos. Não tenho, porém,
nenhum par de meias de lã que tenha sobrado nem avó que as possa tricotar.
Nina M.
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