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sábado, 28 de setembro de 2024

Crónica de Maus Costumes 388

 

Conversas

           -        Ó mãe! Quais são os pecados capitais?

-        Para que queres saber?

-        Quero saber quais os que já cometi…

-        Preguiça, gula, luxúria, ira, inveja… Faltam dois… Vai ao google, não me lembro, de momento. E não são mortais, são veniais.

(Faltaram a avareza e a soberba)

              -      Olha, já cometi dois… Era para saber se tinha esgotado a lista…

            -      Então, quais foram os que cometeste?

            -      A preguiça e a gula.

            -      Passas a vida afirmar que não és crente. Se não acreditas, para que falas em pecados?

            -     Para os fazer todos… Isto é tão estúpido… Não há céu nem inferno nem nada disso e as pessoas desperdiçam o seu tempo a rezar para nada…

            - Sei, então, estás como uma personagem de Dostóievsky, o Ivan Karamazov que diz que “Se Deus não existe, tudo é permitido”?  Eu acho que deves ser mais kantiano, nesse aspeto. Fazer de modo que a tua máxima se possa tornar lei universal, independentemente, de haver ou não uma possível recompensa. Não me parecem bem esses tratados interesseiros. Deve-se fazer o bem, porque a consciência assim o dita… Olha que ouvir a mensagem de Jesus, que é de amor, não faz mal a ninguém.

            - Eu acho que Jesus, sei lá, ele devia ser mais avançado do que os outros e, como naquele tempo, as pessoas não sabiam nada, deviam ficar malucas e achar que Ele era de outro mundo e olha, pronto, ficou famoso…

            - Ficou tão famoso que ainda hoje falamos Dele… Sem Internet, já viste?

            - Sim… Mas isso do céu e do Inferno, isso não existe, por isso é desperdício de tempo rezar e fazer o bem para ir para o céu. Não acontece nada, mesmo…

            - Não sei…

            - De qualquer modo, também se houver, deve haver mais gente no inferno…

            - Bem… A Igreja e as religiões são feitas de homens e muitos não entenderam a palavra de Jesus, outros subverteram e outras manipulam-na conforme os próprios interesses. Mas olha que tenho ouvido um médico falar das experiências de quase morte de vários pacientes, que relatam sentir a consciência a abandonar o corpo, outros falam de luz, de sensação de paz, de encontro com um ente querido… Há estudos feitos que captaram a alteração das ondas cerebrais e uma presença de atividade cerebral diferente, nessas circunstâncias… Por isso, esse médico afirma perentoriamente que a vida continua numa dimensão diferente, que somos energia, átomos, fala da supraconsciência… Não é Lavoisier que diz que “na Natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma?” Nós somos natureza.

           

Ficou por aqui a conversa com o aborrescente de dezassete anos. Ele não sabe como eu gosto que ele tenha estas interpelações. O homem é um ser de angústia e o meu pequeno revela que tem as suas inquietações. Não fala muito, diariamente, mas vai-se saindo com estas questões. São questões filosóficas que o interpelam e ele nem sabe…

Não lhe disse que a minha relação com Deus talvez seja diferente e a imagem que Dele possa fazer não se prende com a que é narrada por homens. Na ideia de Deus não cabe uma entidade autocrática que manipula e decide cruelmente os destino dos homens, à boa maneira dos deuses do Olimpo. O Deus que ordena a Abraão que sacrifique o único filho, Isaac, para testar a sua fé. Tal comportamento é abominável, mesmo tendo enviado o Anjo para suspender o crime. Nem é admissível que castigue Job, numa demonstração de força a Satanás, fazendo-o perder a riqueza, mulher e filhos. Job permaneceu fiel e, mais tarde, foi recompensado com muito mais do que o que teve. No entanto, os filhos perdidos não se recuperam. É uma recompensa amarga. A escritura talvez pretenda mostrar que a recompensa não depende unicamente da fidelidade a Deus. Job era fiel, mas perdeu tudo, no entanto, não perdeu a fé. Talvez se queira insinuar que é preciso ter fé, mesmo quando o pior acontece. Porém, certo é que Job voltou a ser recompensado. Não me parece bem este comportamento discricionário de Deus, parece uma birra e uma demonstração de poder. Nem gosto da suposta proteção das tribos de Israel que chacinavam todos os outros povos que encontravam e se autodenominavam o povo eleito de Deus… A ideia de Deus não pode ser o do Antigo Testamento, onde encontro pontes com a mitologia grega… De cada vez que o Homem se atreve a desafiar a autoridade, leva com o castigo divino cruel, desproporcional e arbitrário. Assim determina Zeus do seu Olimpo luminoso, tal como os outros deuses. A ideia de Deus só combina com amor e espírito democrático. É o Homem, com a suas ações e livre-arbítrio que conduz a sua vida, devendo agir de acordo com a sua consciência, sem esperar recompensa nem castigo. O Homem deve ser o que deve ser. Humano, apenas. E talvez isto possa explicar a inação de Deus ao longo dos tempos. E só assim é compreensível, porque quem tem poder para, arbitrariamente, punir Job, também o poderia fazer com todos aqueles que são o cancro da humanidade. A imagem do Deus do Antigo Testamento é absolutamente inspiradora para todos os ditadores da história: sentem-se poderosos, inatacáveis, superiores, agindo cruelmente e punindo aqueles que lhes desobedecem… Ora, Jesus trouxe precisamente a Boa Nova. Uma mensagem diferente… De modo que as palavras e as ações do Filho desmentem a doutrina anterior. O Velho e o Novo Testamento não são compatíveis, no meu parco entendimento. Escritos por homens e interpretados por eles.

Portanto, filho, não haverá céu nem inferno e a nossa energia talvez se espalhe num infinito e se possa encontrar com outras energias compatíveis, numa outra dimensão ou nem haverá nada e o Lavoisier ter-se-á redondamente enganado, em relação à matéria humana.

Pelo sim pelo não, sê kantiano na construção da tua ética e nunca sairás a perder.

 

Nina M.

 

 

 

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Às ausências irreparáveis

Tu, que partes, assim,
Sem aviso ou de mansinho
E deixas um vazio a descoberto...
Irremediável
Sem solução por medida
Ausente tão presente
Sem que os olhos te alcancem
Nem os ouvidos te ouçam o timbre
Sem que a tua mão se volte a pousar
Sobre outra mão e a enlace
Sem que volte a acariciar o rosto
Num gesto repentino de ternura
Tu, que partes breve ou longamente,
Deixa pousar sobre mim o sopro
De um beijo
O sussurro de uma brisa sob o luar
E saber que não é sopro nem brisa
É a tua presença que me veio procurar...

sábado, 21 de setembro de 2024

Crónica de Maus Costumes 387

 

Para ti, Isabel Ferreira…

            A crónica deste fim de semana é tua, Isabel. Contudo, preferia que fosse outra, que não tivesse de escrever sobre a tua partida, sobre o teu silêncio nem sobre a tua ausência.

            Passaste pela vida como um cometa, cheia de luz, de brilho e de festa. Como um cometa, foste rápida… Mal nos acordámos, deixámos de te ver… Como um cometa, deixas um rasto incandescente.

            A doença levou-te em oito meses. Tempo em que te refugiaste no silêncio. Não quiseste que soubéssemos da tua luta e quando a notícia chegou, tirou-nos o chão a todos. Parecia irreal, uma partida de mau gosto na qual não queríamos acreditar. Tudo demasiado rápido, demasiado cedo… Não era suposto!

            Sabes, Isabel, algures no teu silêncio, lembro de me ter passado pela cabeça a tua ausência na rede social e de pensar que já não interagíamos por messenger há algum tempo, como fazíamos com alguma frequência, e sei que pensei: “tenho de enviar uma mensagem à doutora…” Não enviei. Não o fiz, porque estaria, certamente, ocupada com alguma coisa e deveria ter largado o que quer que fosse para te falar, naquele momento. Não poderia imaginar o que estava a acontecer, obviamente… O momento passou, a vida enreda-nos e acabamos por adiar o que não deve ser adiado. Deveria ter ouvido o meu coração. Fica-me esse peso. Tal como o arrependimento de não ter organizado o segundo encontro. Foi tão bom o primeiro! Rimos tanto. De repente, era como se tivéssemos todos rejuvenescido e nos continuássemos a encontrar, diariamente, à mesa do café de sempre.

Querias tanto o segundo encontro!… Falámos disso e era para ser feito, mas depois… Vamos deixar para o tempo mais quente… De seguida, há sempre uma infinidade de coisas e de contratempos… Os filhos e as suas atividades que condicionam os fins de semana dos pais; outras vezes, estão já ocupados com coisas pragmáticas e aborrecidas, outra vez é por qualquer outro motivo que não deveria existir. Simples assim…

 A dor maior é a de sabermos que não devemos adiar o inadiável, mas passamos a vida a fazê-lo. Onde couber a amizade, a ternura e o amor, caberá, também, o tempo que não espera. Agora, não o podemos recuperar, porque a vida não permite ensaios nem rascunhos. É a sério, a doer e a perder… Cinicamente, a vida fez com que nos encontrássemos todos para nos despedirmos de ti… Ninguém queria que tivesse sido assim. Guardamos-te com a tua alegria e a tua jovialidade, com a tua saudade da vida académica e da “Bila”, com o teu sorriso e a tua gargalhada cheia.

Ficas a saber, doutora, que será impossível passar pela Bila sem te lembrar e, havendo oportunidade, ir buscar os pitos à Lapão e os covilhetes à Gomes, como gostavas de fazer. Tu, que gostavas tanto dos versos de Sophia, em que ela diz que quando morrer, voltará para vir buscar os instantes que não viveu junto do mar, eu acredito que voltarás, em cada um de nós, para vires buscar os instantes que não viveste na tua amada “bila”.

Fica bem, doutora, onde quer que estejas. Espero que te reencontres com o senhor teu pai, aquele te passou o bom gosto da tua cor clubística, o FCP, como sempre anunciavas. Quanto a mim, a tua eterna caloira, como sempre me chamavas, por enquanto, continuarei por cá, a escrever umas coisas para que as possas ler, se te apetecer.

Até sempre, minha doutora preferida. Beijo enorme da caloira.

 

Nina M.

 

sábado, 14 de setembro de 2024

Crónica de Costumes 386

 

Imbecilidades inaceitáveis

O mundo hodierno é estranho e paradoxal. Vivemos na era onde o acesso à informação está à disposição de um clique e, por mais estranho que nos pareça, a desinformação grassa. Saber é poder e controlar o saber, mantendo outros na ignorância, perpetua-o. Não admira, pois, que as notícias falsas proliferem.

Com o desenvolvimento da Inteligência Artificial, o mundo que conhecemos tornar-se-nos-á mais estranho ainda. A facilidade com que alguém conseguirá criar hologramas perfeitos para se fazer passar por outrem é assustadora. Mais assustador é a aceleração com que entramos nesse “admirável mundo novo” sem que haja tempo para que os especialistas da área da ética pensem sobre uma série de questões, levantem os problemas e ajudem na regulação para que não caiamos na possibilidade de vivermos numa espécie de Matrix, onde a realidade virtual substitui aquela em que vivemos. Hoje, com a rápida evolução da tecnologia, a criação de uma realidade virtual paralela que se confunda com a verdadeira não é uma impossibilidade e, por isso mesmo, é assustador. 

As notícias falsas inundam as redes sociais. Através delas, criam-se factos (falsos) e recria-se a realidade existente. A humanidade ainda não aprendeu a discernir a verdade da mentira propagandeada e já se caminha a largos passos para situações em que essa distinção se tornará praticamente impossível.

Surge esta reflexão, após a leitura de uma notícia que dava conta do alvoroço que aconteceu na Wikipédia, depois de a famosa frase com que se inicia o livro O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, “Não se nasce mulher, torna-se mulher” ter sido usada numa prova de acesso, no Brasil. O administrador do site viu-se na contingência de ter de restringir a possibilidade de mexer na entrada Simone de Beauvoir, por estarem a ser cometidos sucessivos atos de vandalismo. A filósofa foi acusada de nada perceber de biologia, de ser pedófila e de ser nazi. Tudo mentiras, linguagem falaciosa que subverte os factos e contamina a opinião pública. Ao que parece, alguém com responsabilidade social, ligado à educação, terá ele mesmo condenado a utilização das célebres palavras da autora na prova. Ora, ou a estupidez é infinita ou a ignorância é muita! Seja qual for o motivo, alguém assim, não deveria ocupar um cargo de tamanha responsabilidade. Espanta-me, ou melhor, já não me espanta nada, que as pessoas não procurem confirmar a veracidade das informações, mas melindra-me que não usem o pensamento para depurar a informação e comam tudo o que lhes é servido ou para destilarem ódio ou com outros fins encobertos e perniciosos.  Acontece que Simone sabia o que afirmava e tinha, sim, os mínimos conhecimentos de biologia. Parvo é quem não é capaz de ultrapassar o sentido literal da frase. Também não era nazi e foi crítica do regime, acontece que trabalhava numa rádio que foi tomada pelos nazis, aquando da capitulação de Paris e ou cumpria o que lhe ditavam ou sofreria, naturalmente, as consequências de quem tinha o atrevimento de desobedecer às claras e acabaria ou morta ou num campo de concentração e, por último, a acusação de pedofilia prende-se com o facto de ter assinado uma petição, juntamente com muitos outros intelectuais franceses para descriminalizar o relacionamento com menores, desde que consentido, a partir dos treze anos, idade com que os jovens podiam ser responsabilizados criminalmente, naquela altura, em França. O raciocínio seria de que se os jovens eram suficientemente adultos para assumirem a responsabilidade por um crime, também o seriam para escolher a sua vida sexual. Convém também lembrar que, na época, o casamento com jovens meninas de quinze e dezasseis anos era vulgar e permitido. Eu discordo absolutamente dessa posição de Simone e dos muitos outros intelectuais, mas não é lícito acusá-la de ter defendido a pedofilia. Por último, o envolvimento sexual de Simone com três alunas, incluindo também Sartre, o seu companheiro, foi usado como arremesso. Na verdade, nenhuma delas era menor de idade e ao que parece, uma delas terá acusado Simone de assédio, mais por despeito do que qualquer outra coisa, pois o vínculo da mestre com Sartre era inquebrável. Esta forma de vida, se ainda hoje é considerada promíscua pela sociedade ocidental, que dizer na França dos anos quarenta do século passado, onde entrevistas a mulheres revelam que mesmo as que estudavam na universidade, tudo o que almejavam era casar-se e dedicar-se à casa. Quando lhes perguntavam sobre o motivo de estudar, se essa era a perspetiva, respondiam que era para serem cultas e, desta forma, não envergonharem o marido, mas que o seu papel deveria ser o de donas de casa, de esposa e de mãe. Aceitavam esta premissa com total resignação e sem questionamento.

Simone de Beauvoir revoluciona a mentalidade patriarcal e vive como quer, rompendo, corajosamente, com os grilhões de uma sociedade castradora da mulher.

Ao afirmar que “não se nasce mulher, torna-se mulher”, a filósofa pretendia apresentar a tese que desenvolverá e justificará ao longo do livro. Como existencialista, a existência precede a essência, assim, o indivíduo (homem ou mulher) constrói-se ao longo da vida, por meio das escolhas que faz. A mulher, ao nascer, não vem programada para ser esposa, mãe ou doméstica. Todas as crenças em relação à mulher, vista, por exemplo, como um ser sensível, atribuindo à sua natureza o impedimento para a execução de determinadas tarefas e cargos, são fruto, na perspetiva de Beauvoir, da socialização e de uma cultura fortemente assente no patriarcado, constituindo uma forma de o homem perpetuar o seu poder e conseguir continuar a inferiorizar ou a secundarizar as mulheres. Durante anos, apenas as meninas eram ensinadas a fazer as tarefas domésticas, eram canalizadas apenas para certas profissões, era-lhes vedado o acesso à vida pública e à política. Não tinham o poder de intervir socialmente.

Não vejo nada de errado no pensamento de Simone no que à secundarização do papel da mulher diz respeito e que foi e ainda continua a ser perpetuada ao longo dos séculos. Se dúvidas houver, basta olhar para outro tipo sociedades, como o Irão e o Afeganistão, por exemplo, para as dissipar.

Mediante toda a informação disponível e que está acessível a qualquer pessoa, resta questionar sobre a intenção dos que subvertem falaciosamente a informação. Discordar da forma como Simone escolheu viver não concede o direito à injúria. Ela deixou um legado importantíssimo para as gerações futuras e quem não lhe reconhece a justiça do pensamento na defesa dos direitos da mulher, só poderá estar de má-fé.

 

Nina M.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Gosto da metáfora do rio

Gosto da metáfora do rio 

Da vida que corre com a correnteza

Sem que a mesma água corra duas vezes 

Sob a mesma ponte

Líquida, diáfana vista de perto

Esverdeada ou barrenta conforme

Os limos, a vegetação e o clima

Como a vida...

Mais amena ou mais intensa

Sofrida como as águas que sulcam fragas

Tudo desagua e termina num mar maior

Feito de tormentas e de calmarias

De céus cinzentos e de belos ocasos

 Fulvos nacarados rosáceos

A laranja que se ofusca no mar

O verso e reverso de uma mesma realidade

Gosto da metáfora do rio

Da foz onde repousa depois de uma jornada 

A desenhar as curvas na paisagem

A cinzel no granito a romper valas

Como quem abre veias cidade afora

Gosto da metáfora do rio

Que sempre desagua no mar

Como a vida na morte

Gosto da metáfora do rio

sábado, 7 de setembro de 2024

Crónica de Maus Costumes 385

 

Setembro

Chegou o setembro e as suas rotinas. Veio envolto na melancolia trazida pela chuva, a lembrar que o outono está próximo e que é tempo de voltar às rotinas ou, nalguns casos, reinventá-las e construir outras.

Associamos a rotina ao aborrecimento, a algo que se cumpre por obrigação, por ter de ser e algumas são mesmo aborrecidas, porém, na verdade, é delas que a vida é maioritariamente feita e não dos pequenos interregnos que fazemos para as quebrar. De modo que quando algumas delas se quebram, por força dos acontecimentos, damos por nós a desejá-las, talvez, a ter a possibilidade de repetir aquele almoço ou o café, de repetir o trajeto para o trabalho, de sentar em silêncio após o jantar, em frente a uma televisão desligada, de pegar tranquilamente num livro para ler, de dar o abraço apertado de sempre ou o beijo a quem se quer bem… Pequenos gestos do quotidiano, esquecidos, que não valorizamos, que muitas vezes nos incomodam, mas quando os perdemos, sentimo-nos desancorados.

Só valorizamos o trabalho que nos aborrece quando o perdemos ou quando não temos saúde para o poder fazer; só percebemos o valor do gesto, quando deixamos de poder abraçar aqueles que sempre tivemos como certos ao nosso lado… Lembro-me ainda, enquanto fui professora contratada, de todos os inícios de setembro serem estranhos. As colocações tardias e a chegada a uma nova escola e, para mim, muitas vezes a uma nova terra, deixavam um certo vazio, uma certa falha, por não estar a cumprir com o que eu era profissionalmente. Tendemos a identificar-nos com o que fazemos, ou seja, a reconhecermo-nos no ofício. Aprendi, com o tempo, que estava errada. Todos nós somos outra coisa. A profissão é o que se faz e não o que se é. Seremos as mesmas pessoas se mudarmos de ofício. Talvez a profissão possa contribuir para o que cada um de nós é, mas não nos define. No entanto, essa ausência de rotina deixava o seu vazio.

Terei de me lembrar deste texto, quando o despertador começar a tocar cedinho e eu o amaldiçoar em silêncio, em pensamento, por incapacidade de verbalização matinal. E lembrar-me das palavras do meu “aborrescente” que, pelos vistos, aprecia a rotina diária de tropeçar com a mãe e a irmã na cozinha, para tomar o pequeno-almoço, trocando apenas um bom-dia quase inaudível. Entenda-se: a mãe saúda e obtém de volta uma espécie de grunhido, que devolve o cumprimento. Os adolescentes rapazes quase não falam. Menos ainda ao pequeno-almoço. Todos agradecemos o silêncio matinal até que o café cumpra com a sua missão de nos ajudar a salvar o dia.

Um dia, sentirei falta desta rotina e até do grunhido… Que fazer na falta delas? Não nos sobra outra alternativa senão a de criar outras…

Chegou setembro, cheio de melancolia trazida pela chuva a lembrar o outono e eu sou primavera/verão… Tempo, para mim, de criar outras rotinas até que as próximas férias de verão nos separem.

Está quase a chegar o outono/inverno e eu sou primavera/verão…

Bom recomeço para todos.

Nina M.