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sábado, 14 de setembro de 2024

Crónica de Costumes 386

 

Imbecilidades inaceitáveis

O mundo hodierno é estranho e paradoxal. Vivemos na era onde o acesso à informação está à disposição de um clique e, por mais estranho que nos pareça, a desinformação grassa. Saber é poder e controlar o saber, mantendo outros na ignorância, perpetua-o. Não admira, pois, que as notícias falsas proliferem.

Com o desenvolvimento da Inteligência Artificial, o mundo que conhecemos tornar-se-nos-á mais estranho ainda. A facilidade com que alguém conseguirá criar hologramas perfeitos para se fazer passar por outrem é assustadora. Mais assustador é a aceleração com que entramos nesse “admirável mundo novo” sem que haja tempo para que os especialistas da área da ética pensem sobre uma série de questões, levantem os problemas e ajudem na regulação para que não caiamos na possibilidade de vivermos numa espécie de Matrix, onde a realidade virtual substitui aquela em que vivemos. Hoje, com a rápida evolução da tecnologia, a criação de uma realidade virtual paralela que se confunda com a verdadeira não é uma impossibilidade e, por isso mesmo, é assustador. 

As notícias falsas inundam as redes sociais. Através delas, criam-se factos (falsos) e recria-se a realidade existente. A humanidade ainda não aprendeu a discernir a verdade da mentira propagandeada e já se caminha a largos passos para situações em que essa distinção se tornará praticamente impossível.

Surge esta reflexão, após a leitura de uma notícia que dava conta do alvoroço que aconteceu na Wikipédia, depois de a famosa frase com que se inicia o livro O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, “Não se nasce mulher, torna-se mulher” ter sido usada numa prova de acesso, no Brasil. O administrador do site viu-se na contingência de ter de restringir a possibilidade de mexer na entrada Simone de Beauvoir, por estarem a ser cometidos sucessivos atos de vandalismo. A filósofa foi acusada de nada perceber de biologia, de ser pedófila e de ser nazi. Tudo mentiras, linguagem falaciosa que subverte os factos e contamina a opinião pública. Ao que parece, alguém com responsabilidade social, ligado à educação, terá ele mesmo condenado a utilização das célebres palavras da autora na prova. Ora, ou a estupidez é infinita ou a ignorância é muita! Seja qual for o motivo, alguém assim, não deveria ocupar um cargo de tamanha responsabilidade. Espanta-me, ou melhor, já não me espanta nada, que as pessoas não procurem confirmar a veracidade das informações, mas melindra-me que não usem o pensamento para depurar a informação e comam tudo o que lhes é servido ou para destilarem ódio ou com outros fins encobertos e perniciosos.  Acontece que Simone sabia o que afirmava e tinha, sim, os mínimos conhecimentos de biologia. Parvo é quem não é capaz de ultrapassar o sentido literal da frase. Também não era nazi e foi crítica do regime, acontece que trabalhava numa rádio que foi tomada pelos nazis, aquando da capitulação de Paris e ou cumpria o que lhe ditavam ou sofreria, naturalmente, as consequências de quem tinha o atrevimento de desobedecer às claras e acabaria ou morta ou num campo de concentração e, por último, a acusação de pedofilia prende-se com o facto de ter assinado uma petição, juntamente com muitos outros intelectuais franceses para descriminalizar o relacionamento com menores, desde que consentido, a partir dos treze anos, idade com que os jovens podiam ser responsabilizados criminalmente, naquela altura, em França. O raciocínio seria de que se os jovens eram suficientemente adultos para assumirem a responsabilidade por um crime, também o seriam para escolher a sua vida sexual. Convém também lembrar que, na época, o casamento com jovens meninas de quinze e dezasseis anos era vulgar e permitido. Eu discordo absolutamente dessa posição de Simone e dos muitos outros intelectuais, mas não é lícito acusá-la de ter defendido a pedofilia. Por último, o envolvimento sexual de Simone com três alunas, incluindo também Sartre, o seu companheiro, foi usado como arremesso. Na verdade, nenhuma delas era menor de idade e ao que parece, uma delas terá acusado Simone de assédio, mais por despeito do que qualquer outra coisa, pois o vínculo da mestre com Sartre era inquebrável. Esta forma de vida, se ainda hoje é considerada promíscua pela sociedade ocidental, que dizer na França dos anos quarenta do século passado, onde entrevistas a mulheres revelam que mesmo as que estudavam na universidade, tudo o que almejavam era casar-se e dedicar-se à casa. Quando lhes perguntavam sobre o motivo de estudar, se essa era a perspetiva, respondiam que era para serem cultas e, desta forma, não envergonharem o marido, mas que o seu papel deveria ser o de donas de casa, de esposa e de mãe. Aceitavam esta premissa com total resignação e sem questionamento.

Simone de Beauvoir revoluciona a mentalidade patriarcal e vive como quer, rompendo, corajosamente, com os grilhões de uma sociedade castradora da mulher.

Ao afirmar que “não se nasce mulher, torna-se mulher”, a filósofa pretendia apresentar a tese que desenvolverá e justificará ao longo do livro. Como existencialista, a existência precede a essência, assim, o indivíduo (homem ou mulher) constrói-se ao longo da vida, por meio das escolhas que faz. A mulher, ao nascer, não vem programada para ser esposa, mãe ou doméstica. Todas as crenças em relação à mulher, vista, por exemplo, como um ser sensível, atribuindo à sua natureza o impedimento para a execução de determinadas tarefas e cargos, são fruto, na perspetiva de Beauvoir, da socialização e de uma cultura fortemente assente no patriarcado, constituindo uma forma de o homem perpetuar o seu poder e conseguir continuar a inferiorizar ou a secundarizar as mulheres. Durante anos, apenas as meninas eram ensinadas a fazer as tarefas domésticas, eram canalizadas apenas para certas profissões, era-lhes vedado o acesso à vida pública e à política. Não tinham o poder de intervir socialmente.

Não vejo nada de errado no pensamento de Simone no que à secundarização do papel da mulher diz respeito e que foi e ainda continua a ser perpetuada ao longo dos séculos. Se dúvidas houver, basta olhar para outro tipo sociedades, como o Irão e o Afeganistão, por exemplo, para as dissipar.

Mediante toda a informação disponível e que está acessível a qualquer pessoa, resta questionar sobre a intenção dos que subvertem falaciosamente a informação. Discordar da forma como Simone escolheu viver não concede o direito à injúria. Ela deixou um legado importantíssimo para as gerações futuras e quem não lhe reconhece a justiça do pensamento na defesa dos direitos da mulher, só poderá estar de má-fé.

 

Nina M.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Gosto da metáfora do rio

Gosto da metáfora do rio 

Da vida que corre com a correnteza

Sem que a mesma água corra duas vezes 

Sob a mesma ponte

Líquida, diáfana vista de perto

Esverdeada ou barrenta conforme

Os limos, a vegetação e o clima

Como a vida...

Mais amena ou mais intensa

Sofrida como as águas que sulcam fragas

Tudo desagua e termina num mar maior

Feito de tormentas e de calmarias

De céus cinzentos e de belos ocasos

 Fulvos nacarados rosáceos

A laranja que se ofusca no mar

O verso e reverso de uma mesma realidade

Gosto da metáfora do rio

Da foz onde repousa depois de uma jornada 

A desenhar as curvas na paisagem

A cinzel no granito a romper valas

Como quem abre veias cidade afora

Gosto da metáfora do rio

Que sempre desagua no mar

Como a vida na morte

Gosto da metáfora do rio

sábado, 7 de setembro de 2024

Crónica de Maus Costumes 385

 

Setembro

Chegou o setembro e as suas rotinas. Veio envolto na melancolia trazida pela chuva, a lembrar que o outono está próximo e que é tempo de voltar às rotinas ou, nalguns casos, reinventá-las e construir outras.

Associamos a rotina ao aborrecimento, a algo que se cumpre por obrigação, por ter de ser e algumas são mesmo aborrecidas, porém, na verdade, é delas que a vida é maioritariamente feita e não dos pequenos interregnos que fazemos para as quebrar. De modo que quando algumas delas se quebram, por força dos acontecimentos, damos por nós a desejá-las, talvez, a ter a possibilidade de repetir aquele almoço ou o café, de repetir o trajeto para o trabalho, de sentar em silêncio após o jantar, em frente a uma televisão desligada, de pegar tranquilamente num livro para ler, de dar o abraço apertado de sempre ou o beijo a quem se quer bem… Pequenos gestos do quotidiano, esquecidos, que não valorizamos, que muitas vezes nos incomodam, mas quando os perdemos, sentimo-nos desancorados.

Só valorizamos o trabalho que nos aborrece quando o perdemos ou quando não temos saúde para o poder fazer; só percebemos o valor do gesto, quando deixamos de poder abraçar aqueles que sempre tivemos como certos ao nosso lado… Lembro-me ainda, enquanto fui professora contratada, de todos os inícios de setembro serem estranhos. As colocações tardias e a chegada a uma nova escola e, para mim, muitas vezes a uma nova terra, deixavam um certo vazio, uma certa falha, por não estar a cumprir com o que eu era profissionalmente. Tendemos a identificar-nos com o que fazemos, ou seja, a reconhecermo-nos no ofício. Aprendi, com o tempo, que estava errada. Todos nós somos outra coisa. A profissão é o que se faz e não o que se é. Seremos as mesmas pessoas se mudarmos de ofício. Talvez a profissão possa contribuir para o que cada um de nós é, mas não nos define. No entanto, essa ausência de rotina deixava o seu vazio.

Terei de me lembrar deste texto, quando o despertador começar a tocar cedinho e eu o amaldiçoar em silêncio, em pensamento, por incapacidade de verbalização matinal. E lembrar-me das palavras do meu “aborrescente” que, pelos vistos, aprecia a rotina diária de tropeçar com a mãe e a irmã na cozinha, para tomar o pequeno-almoço, trocando apenas um bom-dia quase inaudível. Entenda-se: a mãe saúda e obtém de volta uma espécie de grunhido, que devolve o cumprimento. Os adolescentes rapazes quase não falam. Menos ainda ao pequeno-almoço. Todos agradecemos o silêncio matinal até que o café cumpra com a sua missão de nos ajudar a salvar o dia.

Um dia, sentirei falta desta rotina e até do grunhido… Que fazer na falta delas? Não nos sobra outra alternativa senão a de criar outras…

Chegou setembro, cheio de melancolia trazida pela chuva a lembrar o outono e eu sou primavera/verão… Tempo, para mim, de criar outras rotinas até que as próximas férias de verão nos separem.

Está quase a chegar o outono/inverno e eu sou primavera/verão…

Bom recomeço para todos.

Nina M.