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sábado, 8 de julho de 2023

Crónica de Maus Costumes 333

 Eterno retorno e amor fati

“E se um dia ou uma noite um demónio se esgueirasse na tua mais solitária solidão e te dissesse:

- Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande na tua vida há de retornar, e tudo pela mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio.
A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira.

 Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demónio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que responderias: - Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino!

 Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse. A pergunta, diante de tudo e de cada coisa:

- Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?
Pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou então, como terias de ficar de bem contigo mesmo e com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?

Este excerto pode ler-se em “A Gaia Ciência”, de Friedrich Nietzsche e sistematiza o conceito de “eterno retorno”.

Partindo do princípio de que o nosso corpo é um conjunto de incontáveis partículas, oriundas da explosão de estrelas, e de que a massa existente no universo é finita, mas o tempo é infinito, num dado momento, todas as partículas de massa tenderão a ocupar todas as posições possíveis umas em relação às outras, repetindo, inevitavelmente, as posições ocupadas anteriormente. Portanto, como somos feitos de partículas dispostas no espaço, num universo de tempo infinito e de matéria finita, elas (as partículas) repetem as suas posições, logo, repetem também a nossa vida exatamente como ela decorreu, infinitas vezes.

Pela lógica, caros leitores, cada um de vós já leu esta crónica e repetirá a sua leitura ad eternum e, por essa mesma lógica, cada um de nós é, afinal, imortal! Não é maravilhoso?! E o universo é tão perfeito que nos originou com fraca memória (teorizo sem certezas) e tudo de que nos lembramos não passam de breves instantes, breves insinuações baças e nebulosas da memória, que designamos por “déjà vu”.

O desafio que Nietzsche nos propõe e nos faz pensar é mais complexo… A ser verdadeira a possibilidade de termos fraca memória, a nossa vida fica facilitada, porque se não nos lembramos, tudo o que fazemos, neste exato momento, está a ser realizado pela primeira vez, mas e se nos lembrássemos? E se houvesse consciência dessa repetição? Se a cada repetição já conhecêssemos a história, os diálogos, os pensamentos e os desfechos? Teríamos a coragem de viver a mesma vida eternamente, numa caminhada sem fim ou seria um fardo demasiado pesado e rejeitaríamos imediatamente tal hipótese? Que resposta daríamos ao demónio que nos oferecesse esta imortalidade?

Eu não lido muito bem com a rotina. Enfada-me. Cansa-me. Preciso de inventar estratégias para lhe fugir. Suponho que Nietzsche me considerasse fraca e ressentida, sensível à melancolia, pela necessidade da criatividade, pela urgência de criar mundos e viver neles para assim suportar esta dura realidade. É o que a escrita e a imaginação nos permitem: transformamo-nos numa espécie de seres demiúrgicos, com a capacidade de criar universos paralelos. E é tão bom poder fazê-lo. Doloroso também poderá ser, mas catártico.

É esta mesma razão que leva o homem, segundo o mesmo filósofo, a acreditar na vida para além da morte e a buscar a transcendência. Tudo não passa de um analgésico, na sua perspetiva, numa tentativa do homem evitar o sofrimento, nem que para isso tenha de mentir a si mesmo e acreditar na mentira que constrói, neste caso, numa vida para além da morte.

Talvez tentasse negociar com o demónio para me deixar lembrar só dos momentos plenos e que não me importaria de reviver à exaustão. Só esses. Tudo o resto, o melhor seria não lembrar mesmo e viver tudo como se fosse a primeira e única vez. Ora… O que propõe Nietzsche para solucionar o problema que ele mesmo levantou? O conceito de “amor fati”, que mais não significa do que amor ao próprio destino. Aceitação plena da vida ausente de sentido, que caminha inexoravelmente para o nada. Um sim consciente e assertivo em resposta ao desafio lançado, um não só viveria a minha vida eternamente, como quero que seja assim.

Na verdade, Nietzsche é um estoico com umas pinceladas inovadoras… Na sua perspetiva, os que enfrentam a vida de frente, sabendo que as agruras fazem parte da experiência de estar vivo, com toda a autenticidade e sem placebos, merecem viver.

O Nietzsche morreu louco. Depois da famosa cena do cavalo, em Turim, o filósofo nunca mais foi o mesmo. Ao ver o cocheiro chicotear violentamente o cavalo, ele impediu-o, chorando e murmurando palavras impercetíveis ao ouvido do animal. Em 1879, largava o mundo académico e a rejeição de Lou Salomé (a mulher brilhante que encantou Freud, Nietzsche, Rilke…) atirou-o para um mundo de amargura e de solidão. Viria a morrer em 1900, no mesmo ano do nosso Eça de Queirós, e com poucos dias de diferença. Eça morreu a 16 de agosto e o filósofo, no dia vinte e cinco, do mesmo mês, num quadro de demência. A causa da morte não está claramente definida. Segundo os médicos alemães, o óbito estaria relacionado com o consumo excessivo de ópio e de haxixe, que ele usaria como forma de automedicação e há outra teoria que aponta a sífilis como causa, visto que seria um frequentador assíduo de lupanares.

O cinismo da vida é tramado e não dá sossego a ninguém, principalmente, aos maiores. O homem que propôs o “amor fati” não o soube aplicar, caso contrário não teria ensandecido ou viveu tão intensamente e cruamente a dor, sem subterfúgios (tese que cairá por terra caso o consumo de ópio e de haxixe se comprove) que enlouqueceu. Viveu anos em silêncio e as últimas palavras que terá dito foram: “mãe, eu sou um idiota”, dez anos antes da sua morte. Não, Nietzsche. Não eras nada idiota, mas a absoluta solidão e a amargura podem matar; matam a alma, com toda a certeza. Talvez a consciência do eterno retorno à mesma dor da rejeição fosse insuportável e talvez a loucura e a fraca memória fossem melhores do que a consciência.

Nina M.

 

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