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sábado, 13 de maio de 2023

Crónica de Maus Costumes 325

 

Mesquinhez, inveja e pusilanimidade

               Hoje, enquanto estendia a roupa, ouvia duas vizinhas que conversavam. Trocavam impressões e lamúrias sobre relações familiares. Não podiam saber que as estava a ouvir, porque da rua não se vê para o interior da minha casa. Conseguiram fazer-me sorrir enquanto terminava a minha tarefa.

            Puseram-me o resto do dia a pensar sobre o comportamento humano. Extraordinariamente, o que aflige o comum dos mortais não é a guerra que assola o território europeu ou a fome que se encontra espalhada pelo mundo, muito menos o desrespeito pelos direitos humanos. Um destes dias, enquanto ia para trabalho, ouvia na rádio a horrível notícia de termos, dentro do solo português, crianças bem pequenas, compradas por mil euros ou pouco mais do que esta quantia, que estão a ser colocadas nas ruas das cidades, obrigadas à mendicância. Ao que parece, estas pobres vidas são compradas no mercado de leste, principalmente na Roménia e na Bulgária. A escravização continua a existir, no século XXI. O Homem é capaz de progressos extraordinários, como é o caso da inteligência artificial, mas não encontra antídoto para combater a desumanização que o destrói.

            Não deixa de ser pitoresco que com questões destas para serem resolvidas, a preocupação do comum dos mortais seja o atrevimento do familiar que teve comentários menos abonatórios e quem sabe injustos sobre a nossa pessoa. São esses pequenos agravos que roubam o sossego às almas e não outras questões distantes, que por estarem longínquas parecem não nos dizer respeito ou não merecer mais do que um encolher de ombros, resignando-nos à nossa incapacidade de ação direta nesses assuntos. Deixamo-nos consumir mais facilmente por um falso problema que nos é próximo do que pelo que realmente é preocupante. Talvez isto só se explique com o terrível egoísmo do ser humano, que se esgota nas suas dores, incapaz de ver as alheias.

Pelo mesmo motivo, a inveja surge da proximidade, nunca da distância. Suponho que ninguém inveja Mozart, Beethoven, Tolstoi, Camões ou Pessoa. Esses génios são admirados. Porém, já não tenho a certeza de que o Saramago, por exemplo, não tenha sido vítima de inveja alheia, enquanto viveu, talvez até por alguns dos seus pares. Também ninguém admite sentir inveja, porque é feio e sabemo-lo. Sentir inveja, ciúme ou cobiça é próprio do ser humano, mas a forma como se racionaliza o sentimento é que faz a diferença. Pode ser que haja a inteligência para controlar a emoção e a hombridade de admitir que a pessoa merece o que nos perturba, visto que terá trabalhado para isso e poderá servir-nos de inspiração ou então deixamo-nos corroer por ela, desvalorizando e menosprezando o mérito alheio. Na verdade, a inveja não passa de um reconhecimento mudo e doloroso do próprio fracasso. Parece também que a maioria das pessoas não se reconhece como invejosa, mas sente-se objeto da inveja alheia.

Creio não ser afetada por nenhuma das maleitas, quer dizer, gostaria de ter o génio, o dom, o talento natural e a inteligência de muitos, mas como nada disso em mim é excesso, mas antes moderação, na inteligência, e míngua nos talentos, significa também que me livro da invejazinha alheia, por falta de razões que a justifiquem.

            Creio ser este o sentimento que estará na base da revolta dos que quase insultam os colegas contratados por tomarem a decisão de concorrer à vinculação dinâmica. Quem não está disponível para concorrer por vários motivos, sendo o mais frequente de ordem familiar, não gosta de ver outros a concorrer para essas vagas, alegando futuras desistências e descontentamentos. Pois bem, as regras do jogo foram anunciadas e só vai a jogo quem quer. Posso decidir não ir, mas não me dá o direito de maltratar os que pretendem fazê-lo. Já agora, também deve haver professores a sul do Tejo, a quem interessa a vinculação. Sentir inveja do que poderá vincular e que terá de assumir todas as consequências (boas e más) da sua escolha também não é bonito.

            Para findar a incursão pelas atitudes bizarras do ser humano, soube que na opinião do delegado regional de Educação da Direção de Serviços da Região Norte, um tal senhor Luís Carlos Lobo (o nome fui eu pesquisar), os professores que fazem greves são uns radicais que dão má imagem à escola. Quem o afirmou publicamente, nas suas redes sociais, foi o colega Luís Sottomaior Braga, que garante ter ouvido o comentário feito com o diretor da sua escola, via telefónica. Acrescenta que se trata de uma forma de pressão ao seu diretor, uma vez que ele, apesar do cargo de subdiretor que exerce, nessa escola, tem participado ativamente na luta dos professores. Não posso fazer leitura de intenções à distância, mas acredito que o comentário seja verdadeiro, porque o colega não iria ser leviano ao ponto de apregoar uma mentira sobre alguém com responsabilidade na área da educação, que lhe poderia, inclusivamente, trazer problemas jurídicos. Ora, fiando-me na veracidade dos factos, só me resta considerar tal opinião miserável, mesquinha, pidesca e inaceitável em quem exerce cargos dessa natureza, porquanto não saiba o significado de um regime democrático. Quem assim pensa e age não me merece qualquer respeito. A pusilanimidade deve ter limites.

            Não admira, portanto, que o Freud preferisse a companhia dos animais à do ser humano. Dizia ele que os bichos não sofriam de personalidade dividida nem de desintegração do ego e que resulta da tentativa de o homem se adaptar a padrões de civilização demasiado elevados para o seu intelecto e para o seu mecanismo psíquico. Somos, portanto, seres inadaptados e coartados por uma civilização complicada, capazes das piores ações. Perante estes factos, sobra pouca esperança na humanidade.

 

Nina M.

 

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