Mesquinhez, inveja e pusilanimidade
Hoje, enquanto estendia a roupa, ouvia
duas vizinhas que conversavam. Trocavam impressões e lamúrias sobre relações
familiares. Não podiam saber que as estava a ouvir, porque da rua não se vê para
o interior da minha casa. Conseguiram fazer-me sorrir enquanto terminava a
minha tarefa.
Puseram-me o
resto do dia a pensar sobre o comportamento humano. Extraordinariamente, o que
aflige o comum dos mortais não é a guerra que assola o território europeu ou a
fome que se encontra espalhada pelo mundo, muito menos o desrespeito pelos
direitos humanos. Um destes dias, enquanto ia para trabalho, ouvia na rádio a horrível
notícia de termos, dentro do solo português, crianças bem pequenas, compradas
por mil euros ou pouco mais do que esta quantia, que estão a ser colocadas nas
ruas das cidades, obrigadas à mendicância. Ao que parece, estas pobres vidas
são compradas no mercado de leste, principalmente na Roménia e na Bulgária. A
escravização continua a existir, no século XXI. O Homem é capaz de progressos
extraordinários, como é o caso da inteligência artificial, mas não encontra
antídoto para combater a desumanização que o destrói.
Não deixa de
ser pitoresco que com questões destas para serem resolvidas, a preocupação do
comum dos mortais seja o atrevimento do familiar que teve comentários menos
abonatórios e quem sabe injustos sobre a nossa pessoa. São esses pequenos
agravos que roubam o sossego às almas e não outras questões distantes, que por
estarem longínquas parecem não nos dizer respeito ou não merecer mais do que um
encolher de ombros, resignando-nos à nossa incapacidade de ação direta nesses assuntos.
Deixamo-nos consumir mais facilmente por um falso problema que nos é próximo do
que pelo que realmente é preocupante. Talvez isto só se explique com o terrível
egoísmo do ser humano, que se esgota nas suas dores, incapaz de ver as alheias.
Pelo mesmo motivo, a inveja surge da proximidade, nunca da
distância. Suponho que ninguém inveja Mozart, Beethoven, Tolstoi, Camões ou
Pessoa. Esses génios são admirados. Porém, já não tenho a certeza de que o Saramago,
por exemplo, não tenha sido vítima de inveja alheia, enquanto viveu, talvez até
por alguns dos seus pares. Também ninguém admite sentir inveja, porque é feio e
sabemo-lo. Sentir inveja, ciúme ou cobiça é próprio do ser humano, mas a forma
como se racionaliza o sentimento é que faz a diferença. Pode ser que haja a
inteligência para controlar a emoção e a hombridade de admitir que a pessoa
merece o que nos perturba, visto que terá trabalhado para isso e poderá
servir-nos de inspiração ou então deixamo-nos corroer por ela, desvalorizando e
menosprezando o mérito alheio. Na verdade, a inveja não passa de um
reconhecimento mudo e doloroso do próprio fracasso. Parece também que a maioria
das pessoas não se reconhece como invejosa, mas sente-se objeto da inveja
alheia.
Creio não ser afetada por nenhuma das maleitas, quer dizer,
gostaria de ter o génio, o dom, o talento natural e a inteligência de muitos,
mas como nada disso em mim é excesso, mas antes moderação, na inteligência, e
míngua nos talentos, significa também que me livro da invejazinha alheia, por
falta de razões que a justifiquem.
Creio ser
este o sentimento que estará na base da revolta dos que quase insultam os
colegas contratados por tomarem a decisão de concorrer à vinculação dinâmica. Quem
não está disponível para concorrer por vários motivos, sendo o mais frequente
de ordem familiar, não gosta de ver outros a concorrer para essas vagas, alegando
futuras desistências e descontentamentos. Pois bem, as regras do jogo foram
anunciadas e só vai a jogo quem quer. Posso decidir não ir, mas não me dá o
direito de maltratar os que pretendem fazê-lo. Já agora, também deve haver
professores a sul do Tejo, a quem interessa a vinculação. Sentir inveja do que
poderá vincular e que terá de assumir todas as consequências (boas e más) da sua
escolha também não é bonito.
Para findar
a incursão pelas atitudes bizarras do ser humano, soube que na opinião do
delegado regional de Educação da Direção de Serviços da Região Norte, um tal
senhor Luís Carlos Lobo (o nome fui eu pesquisar), os professores que fazem greves
são uns radicais que dão má imagem à escola. Quem o afirmou publicamente, nas
suas redes sociais, foi o colega Luís Sottomaior Braga, que garante ter ouvido o
comentário feito com o diretor da sua escola, via telefónica. Acrescenta que se
trata de uma forma de pressão ao seu diretor, uma vez que ele, apesar do cargo
de subdiretor que exerce, nessa escola, tem participado ativamente na luta dos
professores. Não posso fazer leitura de intenções à distância, mas acredito que
o comentário seja verdadeiro, porque o colega não iria ser leviano ao ponto de
apregoar uma mentira sobre alguém com responsabilidade na área da educação, que
lhe poderia, inclusivamente, trazer problemas jurídicos. Ora, fiando-me na
veracidade dos factos, só me resta considerar tal opinião miserável, mesquinha,
pidesca e inaceitável em quem exerce cargos dessa natureza, porquanto não saiba
o significado de um regime democrático. Quem assim pensa e age não me merece
qualquer respeito. A pusilanimidade deve ter limites.
Não admira,
portanto, que o Freud preferisse a companhia dos animais à do ser humano. Dizia
ele que os bichos não sofriam de personalidade dividida nem de desintegração do
ego e que resulta da tentativa de o homem se adaptar a padrões de civilização
demasiado elevados para o seu intelecto e para o seu mecanismo psíquico. Somos,
portanto, seres inadaptados e coartados por uma civilização complicada, capazes
das piores ações. Perante estes factos, sobra pouca esperança na humanidade.
Nina M.
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