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sábado, 5 de fevereiro de 2022

Crónica de Maus Costumes 264

 Indisposição

             Leio notícias sobre o Afeganistão. Não gosto. O que se esperava e estava à vista aconteceu. Mais repressão e supressão de direitos, sobretudo das mulheres.
            Basta uma busca rápida na Internet e vemos títulos a dar conta de fecho de portas da comunicação social, filas para receber pão, venda de órgãos, venda de crianças. Ouvi horrorizada o testemunho de um pai que tinha vendido a filha, uma criança de seis anos, para futuro casamento, por certa quantia, a lamentar-se pelo facto de a menina, vítima de um acidente, ter fraturado uma perna e o noivo, por esse motivo, parecer desinteressado do negócio. Talvez tema uma noiva manca! O pai queixa-se por não a poder vender! Vejam lá! Ficar agora com mais uma boca imprestável para alimentar!
Nada disto é novo. Eu sei. Porém, de cada vez que ouço ou leio notícias destas, dá-se um sismo em mim. Não consigo evitar. Não compreendo e não há diferença cultural que me seja suficiente para justificar estes comportamentos selvagens e inqualificáveis! Não os tolero e a ira toma conta de mim. Gera-me uma irritação crescente que não consigo controlar e que é sentida pelos meus pequenos, que se lamentam da falta de paciência da mãe. Como ignorar isto? Digam-me como fazer… Talvez eu conheça a receita, mas no instante em que sou confrontada com estas crueldades absurdas, porque somos colocados perante o absurdo, não me sei alienar. Não consigo e não o quero fazer. Por isso, a ira vai andar comigo até amanhã, até ao momento em que calço as sapatilhas e saio para correr, para exorcizar os demónios que se instalam em mim. São demónios que me contaminam a alma e o coração que se querem proteger, porque os pensamentos e a minha vontade para com os responsáveis diretos destas ações (e não são o pai vendedor nem o noivo comprador, ainda que o meu asco por eles se agudize) não são dignificantes.
            Ghulam Hazrat, de 40 anos, vendeu o rim para conseguir comprar comida para os filhos. "Não podia ir para a rua mendigar por dinheiro, então decidi ir ao hospital e vender o meu rim". Fê-lo para poder alimentar os filhos durante algum tempo. Uns vendem órgãos para proteger os filhos, outros vendem os filhos para poder comer, mas há quem o faça por tradição.
            A família de Kailan vive com menos dificuldades e vende as filhas por tradição. Este diz que vendeu a filha Najibeh por cinquenta mil afeganis. “O marido dela já me deu 25 mil, e quando pagar o resto leva-a com ele”. Há dois anos, Kailan vendeu outra filha por 100 mil afeganis.
            Há dois anos, o país ainda não tinha caído nas mãos dos Talibã e, apesar da pobreza, a situação era menos grave. Como aceitar a cultura e a tradição como justificativas de comportamentos bárbaros, como o casamento infantil, neste caso, e a mutilação genital noutros, entre outras barbáries?! A ONU tem atuado no sentido de consciencializar as comunidades para o perigo destas práticas. Iniciou também um projeto de assistência financeira às famílias para proteger as meninas e tenta convencer os líderes religiosos a condenar o casamento infantil. Os ativistas locais têm sido ameaçados e perseguidos. Veem-se obrigados a fugir e a atuar no anonimato. Alguns desaparecem misteriosamente. Os corpos, se encontrados, não são reconhecidos pelos seus familiares, com receio de represálias.
            A organização das Nações Unidas está a pedir 4 mil e 400 milhões de euros para combater a crise que se vive atualmente no Afeganistão. Duas em cada três crianças precisam de ajuda. Desde que os talibãs tomaram de assalto o país, a situação económica degradou-se e alguns países impuseram sanções. Alguém acreditava que os talibãs iriam cumprir com o que prometiam? Vigoram a ditadura e a crueldade, a censura e as meninas voltaram a ser proibidas de ir à escola.
Haverá melhor forma de perpetuar esta aberração do que manter o povo na ignorância e a mulher subjugada? A comunidade internacional tem de fazer mais!
A saída dos Estados Unidos foi precipitada, mas forças armadas daquele país deveriam e tinham por obrigação de o defender! Afinal, tiveram formação e treino militar.
Dificilmente se mudam as mentalidades, mas há casos em que a tolerância se transforma em cumplicidade criminosa!
Doem-me os olhares entristecidos das crianças e dos progenitores que mostram a cicatriz do rim vendido. Dói-me que se perpetue a miséria, o abuso e a ignorância.
Para combater esta dor e esta angústia, só o meu mundo secreto, o meu refúgio onde me posso abandonar e alcançar a paz, mas que hoje me parece demasiado longínquo.
 
Nina M.
 

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