Seguidores

sábado, 15 de agosto de 2020

Crónica de Maus Costumes 195


Ruralidade e qualidade de vida

Sou uma afortunada e cada vez mais tenho essa consciência. Na verdade, a grande maioria dos portugueses são afortunados se compararmos o nosso nível de vida com países de terceiro mundo. Basta ter a consciência de que a maioria dos seres humanos vive deploravelmente, miseravelmente, para me sentir uma privilegiada e sinto uma infinita vergonha por perpetuarmos essa situação.
Cada um de nós é também responsável, na medida em que não exigimos aos líderes uma distribuição mais justa da riqueza e continuamos a admitir o capitalismo selvagem, que engorda brutalmente uns, enquanto mata à fome milhões! E isto não é ser comunista! Considero a economia de mercado indispensável para que possamos viver com o mínimo de conforto a que já estamos habituados, mas deve haver alguma regulação e há desmandos que deveriam ser interditos. Todos deveríamos lutar pelo custo justo do produto. Não deveria ser possível a exploração que sabemos existir em alguns países onde as grandes multinacionais mandam fazer as suas peças de roupa e de calçado, por exemplo, sabendo quanto pagam a quem trabalha e o preço final de venda ao público! É inadmissível. É imoral, é injusto. Enfim, é uma grande canalhice! Desde que me reconheço que identifico esta angústia. Ninguém deveria morrer à fome com o desperdício alimentar a que assistimos! Talvez, por isso, na minha casa, não se desperdicem restos. Tudo se reaproveita e reinventa. Quem gostar menos, há sempre uma peça de fruta para compensar.
Porém, hoje, não era exatamente sobre essa ignomínia com a qual convivemos placidamente a que me referia. A sensação de privilégio a que me refiro é por viver numa cidade muito pequena, sendo ainda um meio rural, mas onde nada falta: cuidados de saúde e de educação (serviço público e oferta variada de privados), segurança e tranquilidade. Admito que a oferta cultural deixa um pouco a desejar, mas a verdade é que estamos a vinte minutos do Porto (se usarmos a autoestrada), de Penafiel, de Santo Tirso e a trinta minutos de Guimarães. A cidade não é propriamente bonita. Não tem um centro histórico como eu gostaria que existisse, apesar de haver alguns pontos dispersos de interesse e com História (Citânia de Sanfins de Ferreira, Mosteiro de São Pedro de Ferreira, o dólmen de Lamoso…), mas está bem localizada, perto de tudo e afastada o suficiente do bulício que nos retira anos de vida! Saber que preciso apenas de quinze ou vinte minutos para chegar ao meu local de trabalho, sem filas nem desesperos é inigualável! Ver os meus filhos felizes a andarem de bicicleta na rua, poderem brincar com os amiguinhos até às 11:00 ou ainda mais tarde, nas noites quentes de verão, é um privilégio com o qual cresci e que já não é para todos! É tempo que desligam do mundo virtual e como gosto de ver que preferem a interação presencial ao ecrã do tablet ou do computador! As escolas públicas que os meus filhos frequentam distam 5 minutos de minha casa (de automóvel), dez ou quinze a pé. O mais velho já se sente mais crescido por poder regressar ao lar, na companhia dos amigos, no final das aulas! Numa cidade grande, seria completamente impossível!
Um destes dias, em conversa com uma das minhas cunhadas, que trabalha na área da saúde e que tem um irmão e uma cunhada também profissionais no mesmo ramo, mas em Lisboa, dizia-me que com a assistência ao domicílio por causa da covid-19, eles tiveram a real perceção das vidas difíceis dos pobres residentes na capital. Estamos a falar de ver dez ou mais pessoas a morarem num T1! Espantada, dizia às suas colegas que em Trás-os-Montes já não se vê disso! E, na verdade, olhando bem para os preços insustentáveis da habitação em Lisboa e no Porto, tenho a consciência de que aí não teria capacidade financeira para ter a casa que tenho. Quem aí vive, longe da família, paga balúrdios pelo colégio do filho (normalmente um, porque dois ou três fica insustentável), veem-se obrigados a fazer horas extraordinárias (havendo essa possibilidade) para poderem ter a almejada vida burguesa. Sei de alguém que saiu de Lisboa, mora em Viana do Castelo e vem trabalhar para Matosinhos diariamente e, ainda assim, diz que agora tem qualidade de vida e que nem precisa de fazer horas extra! Não posso deixar de me interrogar se valerá a pena… Entendo quem tenha que obrigatoriamente fazê-lo por questões laborais, mas em muitos casos, já não é disso que se trata, mas talvez a falsa ilusão de que só nas cidades grandes se tem acesso a serviços de qualidade e a oportunidades de trabalho. Talvez já tenha sido assim, mas atualmente, nada mais provinciano do que ter esse pensamento! Quanto não vale gastar pouco tempo na viagem para o trabalho e sem engarrafamentos? Quanto não vale poder ir buscar os filhos à escola ou ter quem o faça (familiares, serviços de ATL) a preços comportáveis? Quanto não vale poder ver crescer os filhos, passar os fins de semana em família? Quanto não vale poder ter um bocadinho de tempo para nós? Trabalhar até à exaustão para poder ter a falsa ilusão de uma vida desafogada, sem tempo para usufruir do dinheiro que se ganhou é viver bem?!
Como sou privilegiada! Ainda sei a que sabem as batatas, os tomates, os pepinos, as alfaces da horta e ao que sabe o vinho doce, acabado de fermentar, que há sempre um vizinho ou um familiar com quintal que nos faz chegar as iguarias.
Hoje, vive melhor um pobre na aldeia, vila ou pequena cidade, desde que não tenha medo do trabalho, do que um pobre na cidade grande, porque a qualidade de vida não é mensurável apenas pelo salário auferido. Nunca viveria numa grande cidade! Quanto à cultura, felizmente, está disseminada por todo o país e havendo vontade, também se gasta um bocadinho do nosso tempo para a procurarmos. Afinal, de Bragança a Lisboa já não são nove horas de distância, como diz a música dos Xutos, em tempos que já lá vão! Julgo que começa a haver esta perceção e a prová-lo está o turismo de natureza no interior do país, cada vez mais procurado. Talvez as pessoas se comecem a aperceber da qualidade de vida que podem ter em lugares mais tranquilos. 
Com esta crónica me despeço dos que habitualmente me acompanham e a quem devo gratidão. Parto para férias de verão, para um local idílico, longe de grandes multidões, que nunca foram o meu forte. Assim se justifica a minha falta de apreço pelas festas populares. Perdoem-me, porque sei que é mau para muitos e, a mim, na verdade, não me perturba nada, porque não canso lá os meus pés, mas que é um sossego… Lá isso… Não o nego…
Boas férias a todos e até setembro!
Nina M.





Sem comentários:

Enviar um comentário