Ruralidade e qualidade de vida
Sou uma afortunada e cada vez mais tenho essa
consciência. Na verdade, a grande maioria dos portugueses são afortunados se
compararmos o nosso nível de vida com países de terceiro mundo. Basta ter a
consciência de que a maioria dos seres humanos vive deploravelmente, miseravelmente,
para me sentir uma privilegiada e sinto uma infinita vergonha por perpetuarmos
essa situação.
Cada um de nós é também responsável, na medida em
que não exigimos aos líderes uma distribuição mais justa da riqueza e
continuamos a admitir o capitalismo selvagem, que engorda brutalmente uns, enquanto
mata à fome milhões! E isto não é ser comunista! Considero a economia de
mercado indispensável para que possamos viver com o mínimo de conforto a que já
estamos habituados, mas deve haver alguma regulação e há desmandos que deveriam
ser interditos. Todos deveríamos lutar pelo custo justo do produto. Não deveria
ser possível a exploração que sabemos existir em alguns países onde as grandes
multinacionais mandam fazer as suas peças de roupa e de calçado, por exemplo, sabendo
quanto pagam a quem trabalha e o preço final de venda ao público! É
inadmissível. É imoral, é injusto. Enfim, é uma grande canalhice! Desde que me
reconheço que identifico esta angústia. Ninguém deveria morrer à fome com o
desperdício alimentar a que assistimos! Talvez, por isso, na minha casa, não se
desperdicem restos. Tudo se reaproveita e reinventa. Quem gostar menos, há
sempre uma peça de fruta para compensar.
Porém, hoje, não era exatamente sobre essa
ignomínia com a qual convivemos placidamente a que me referia. A sensação de
privilégio a que me refiro é por viver numa cidade muito pequena, sendo ainda
um meio rural, mas onde nada falta: cuidados de saúde e de educação (serviço
público e oferta variada de privados), segurança e tranquilidade. Admito que a
oferta cultural deixa um pouco a desejar, mas a verdade é que estamos a vinte
minutos do Porto (se usarmos a autoestrada), de Penafiel, de Santo Tirso e a
trinta minutos de Guimarães. A cidade não é propriamente bonita. Não tem um
centro histórico como eu gostaria que existisse, apesar de haver alguns pontos
dispersos de interesse e com História (Citânia de Sanfins de Ferreira, Mosteiro
de São Pedro de Ferreira, o dólmen de Lamoso…), mas está bem localizada, perto
de tudo e afastada o suficiente do bulício que nos retira anos de vida! Saber que
preciso apenas de quinze ou vinte minutos para chegar ao meu local de trabalho,
sem filas nem desesperos é inigualável! Ver os meus filhos felizes a andarem de
bicicleta na rua, poderem brincar com os amiguinhos até às 11:00 ou ainda mais
tarde, nas noites quentes de verão, é um privilégio com o qual cresci e que já
não é para todos! É tempo que desligam do mundo virtual e como gosto de ver que
preferem a interação presencial ao ecrã do tablet
ou do computador! As escolas públicas que os meus filhos frequentam distam
5 minutos de minha casa (de automóvel), dez ou quinze a pé. O mais velho já se
sente mais crescido por poder regressar ao lar, na companhia dos amigos, no
final das aulas! Numa cidade grande, seria completamente impossível!
Um destes dias, em conversa com uma das minhas
cunhadas, que trabalha na área da saúde e que tem um irmão e uma cunhada também
profissionais no mesmo ramo, mas em Lisboa, dizia-me que com a assistência ao
domicílio por causa da covid-19, eles tiveram a real perceção das vidas
difíceis dos pobres residentes na capital. Estamos a falar de ver dez ou mais
pessoas a morarem num T1! Espantada, dizia às suas colegas que em
Trás-os-Montes já não se vê disso! E, na verdade, olhando bem para os preços
insustentáveis da habitação em Lisboa e no Porto, tenho a consciência de que aí
não teria capacidade financeira para ter a casa que tenho. Quem aí vive, longe
da família, paga balúrdios pelo colégio do filho (normalmente um, porque dois
ou três fica insustentável), veem-se obrigados a fazer horas extraordinárias
(havendo essa possibilidade) para poderem ter a almejada vida burguesa. Sei de
alguém que saiu de Lisboa, mora em Viana do Castelo e vem trabalhar para
Matosinhos diariamente e, ainda assim, diz que agora tem qualidade de vida e que
nem precisa de fazer horas extra! Não posso deixar de me interrogar se valerá a
pena… Entendo quem tenha que obrigatoriamente fazê-lo por questões laborais,
mas em muitos casos, já não é disso que se trata, mas talvez a falsa ilusão de
que só nas cidades grandes se tem acesso a serviços de qualidade e a
oportunidades de trabalho. Talvez já tenha sido assim, mas atualmente, nada
mais provinciano do que ter esse pensamento! Quanto não vale gastar pouco tempo
na viagem para o trabalho e sem engarrafamentos? Quanto não vale poder ir
buscar os filhos à escola ou ter quem o faça (familiares, serviços de ATL) a
preços comportáveis? Quanto não vale poder ver crescer os filhos, passar os
fins de semana em família? Quanto não vale poder ter um bocadinho de tempo para
nós? Trabalhar até à exaustão para poder ter a falsa ilusão de uma vida
desafogada, sem tempo para usufruir do dinheiro que se ganhou é viver bem?!
Como sou privilegiada! Ainda sei a que sabem as
batatas, os tomates, os pepinos, as alfaces da horta e ao que sabe o vinho
doce, acabado de fermentar, que há sempre um vizinho ou um familiar com quintal
que nos faz chegar as iguarias.
Hoje, vive melhor um pobre na aldeia, vila ou
pequena cidade, desde que não tenha medo do trabalho, do que um pobre na cidade
grande, porque a qualidade de vida não é mensurável apenas pelo salário
auferido. Nunca viveria numa grande cidade! Quanto à cultura, felizmente, está
disseminada por todo o país e havendo vontade, também se gasta um bocadinho do
nosso tempo para a procurarmos. Afinal, de Bragança a Lisboa já não são nove
horas de distância, como diz a música dos Xutos, em tempos que já lá vão! Julgo
que começa a haver esta perceção e a prová-lo está o turismo de natureza no
interior do país, cada vez mais procurado. Talvez as pessoas se comecem a
aperceber da qualidade de vida que podem ter em lugares mais tranquilos.
Com esta crónica me despeço dos que habitualmente
me acompanham e a quem devo gratidão. Parto para férias de verão, para um local
idílico, longe de grandes multidões, que nunca foram o meu forte. Assim se
justifica a minha falta de apreço pelas festas populares. Perdoem-me, porque
sei que é mau para muitos e, a mim, na verdade, não me perturba nada, porque
não canso lá os meus pés, mas que é um sossego… Lá isso… Não o nego…
Boas férias a todos e até setembro!
Nina M.
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