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sábado, 26 de julho de 2025

Crónica de Maus Costumes 431

 

Férias e atrasos

               Último fim de semana de julho e, como já se tornou hábito, esta rubrica semanal ficará em pousio até agosto. É preciso parar e alterar rotinas. As férias são boas para quebrar hábitos, mesmo que estes sejam aprazíveis. Aprender a abrandar e a não ter pressa. Aprender a viver sem relógios e sem horas certas. Para muitos poderá ser um desafio, para outros uma benesse.

            Eu gosto de poder andar sem relógio. Não significa almoçar às 15h00, mas às vezes, às 14h00, poderá ser ou nem sequer almoçar propriamente… Fazer um pequeno-alomoço mais consistente e tardio também sabe bem. É um aborrecimento andarmos a toque de caixa das horas, principalmente, nos dias largos e quentes, em que as 19h00 nos parecem 17h00. Na verdade, quem me conhece estará a pensar que esses maquinismos do tempo não me ofendem muito, porque eu esqueço-me de olhar para eles e quando dou conta, o tempo já voou. É irritante e castrador termos de nos alinhar pelo ritmo do mundo e o tempo só existe porque alguém inventou o relógio e as horas certas. A vantagem das férias está nesta maior flexibilização temporal, saber que se não se almoçar às 13h00 não vem mal ao mundo e pode-se sempre comer às 13h30 e sabe tão bem !

            Em minha defesa, sobre a má relação que tenho com o tempo (andamos variadas vezes de costas voltadas), alego a possibilidade de eu não tomar conscientemente parte nisso. Tenho a teoria do determinismo biológico de Sapolsky a defender-me. Não olho para o relógio, porque o meu cérebro escolhe assim, antes de qualquer decisão consciente, portanto, o livre-arbítrio será mera ilusão. Cientificamente é possível provar que o cérebro escolhe antes da nossa consciência. Evidentemente, esta teoria colocaria vários problemas ao ser humano, nomeadamente, na aplicação da lei. Como punir alguém desprovido de livre-arbítrio ? Por muito que me quisesse respaldar em Sapolsky, o neurocompatibilismo não mo permite fazer, já que defende que mesmo que o cérebro antecipe decisões, a consciência pode intervir, havendo espaço para a liberdade, que é o mesmo que me dizerem, deixa-te de retóricas e vai olhando para o relógio, se faz favor, gostes ou não ! À força de implementar este hábito, o cérebro mudará com a experiência por ser plástico. O livre-arbítrio é parcial e condicionado quer por fatores internos quer externos, mas existe ! Eu respondo : está bem, mas nas férias olharei para esse objeto com mais parcimónia, porque elas foram inventadas para destruir as horas certas e fazermos coisas que habitualmente não conseguimos realizar. Tanto pode ser almoçar mais tarde, como percorrer a linha costeira do país, a pé. Aí está um desafio que gostaria de cumprir. Seria serviço para um mês ou mês e meio, o que me obriga a adiar a decisão, porque quando terminasse a tarefa, estaria na contingência de ter de regressar ao trabalho mais cansada do que no início das férias.

O meu cérebro consegue ter ideias bastante parvas e a minha consciência emenda-o. Não deixa de ser um aborrecimento, visto que me lembra da minha responsabilidade nas minhas escolhas, rebentando com a teoria de Sapolsky, empurrando-me para braços sartrianos… As férias também podem servir para se ter pensamentos parvos ou para aquilo que nos aprouver… Enfim… Vivenciai-as como quiserdes ou puderdes e voltaremos a reencontrar-nos em setembro. Por essa altura, espero que a polémica em torno da disciplina de Cidadania tenha assentado. Como sempre, muito alarido, muito aproveitamento político, pouco siso e pouco interesse em discussões profícuas. Obviamente, a Educação Sexual  não deixará de existir, mas enquanto a temática balança entre ultraconservadores bafientos e wokistas desequilibrados perdem os alunos e a sociedade. Importaria mais centrar a atenção noutros problemas de maior gravidade. É preciso começar a solucionar a crise da habitação, da saúde e da falta de professores.,,

O Governo precisa de fazer como eu e obrigar-se a olhar para o relógio.

Boas férias !

 

Nina M.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Exílio

Exílio é
Ausência
Falha e
Vazio

Áspero
Íngreme e
Exíguo

Encontro é
Lume
Plenitude e
Paixão

Se no exílio
Se perde a alma
O encontro ilumina
O coração


sábado, 19 de julho de 2025

Crónica de Maus Costumes 430

 

Futuro e escolhas

            Está prestes a finalizar uma etapa para muitos alunos e a começar outra. Há alunos, ainda, em exame, seja porque precisam de uma nova oportunidade para finalizarem o secundário, seja porque entendem que precisam de melhorar a classificação a determinada disciplina, para que possam alcançar os seus objetivos.

            Sempre que saem os resultados dos exames, fazem-se estatísticas e comparam-se resultados relativamente ao ano anterior, mesmo que as circunstâncias e os intervenientes no processo sejam diferentes,  como se isso não fizesse qualquer diferença para a análise. Esta tendência de olhar para o conjunto de uma perspetiva só inquina todo o processo.

            Constatou-se que a média nacional obtida na disciplina de Português subiu e que a Matemática desceu. Pior, nesta disciplina, 48% por cento dos alunos não alcançou a positiva. É francamente negativo. Se preferirmos uma perspetiva mais otimista, pode-se dizer que 52% dos alunos alcançaram resultados positivos. Ter quase metade dos alunos com classificações inferiores a dez não é bom e é necessário analisar detalhadamente as circunstâncias para se compreender o que se passa com os jovens portugueses e a Matemática (o eterno problema).

            Raramente, situações complicadas admitem leituras e soluções simples, portanto, dispenso sempre a tendência simplista de alguns levantarem o dedo em riste à falta de estudo e de comprometimento dos alunos e ao badalado facilitismo, como únicas explicações possíveis e viáveis e sem a admissão de outras causas. Creio serem capazes de fazer melhor. Os educadores têm a obrigação de fazerem um bocadinho melhor. Contra mim, tenho um adolescente com a suas dificuldades a Matemática e pouca motivação para o seu estudo. No entanto, ainda assim, é a disciplina para a qual se tenta preparar com maior zelo, dentro do seu perfil. Quando se fala de facilitismo, no secundário, torço o nariz. Vejo bem a quantidade de exercícios que os professores de Matemática impingem aos alunos, semanalmente, para que estes treinem, porque só com treino conseguem, nalguns casos, chegar à positiva e noutros alcançarem resultados muito bons. Egoisticamente e, talvez, erradamente, os professores de Matemática tendem a queimar tudo à sua volta, isto é, a quantidade de exercícios que lhes pedem para treino é tanta que se os das outras disciplinas pedissem o mesmo, os alunos não comiam nem dormiam. Na verdade, o ideal e o que os docentes desta disciplina aconselham aos alunos é a estudar, diariamente, pelo menos duas horas, mas se forem quatro tanto melhor. Ora… Pelo que observo, as meninas cumprem. A maioria dos rapazes não o faz. Não têm essa disciplina nem essa vontade férrea.  Se falta de estudo é isto. Sim, haverá falta de estudo. Seria interessante haver uma análise comparativa entre os resultados das meninas e dos rapazes, na Matemática.

            Sem desculpar a falta de empenho de muitos, se uma disciplina só exige que quase todo o tempo de estudo lhe seja dedicado, algo não pode estar bem. Mal dos alunos se tivessem de estudar duas horas diárias para todas as outras também. Os miúdos teriam um horário pior do que a jornada de trabalho dos pais. Particularmente, gostaria mesmo que existisse um estudo comparativo entre a Matemática exigida aos alunos portugueses, no ensino secundário, com a que se exige em países como a Finlândia, a Estónia (país que tem vindo a crescer em termos de resultados escolares, tendo ultrapassado a Finlândia, sempre usada como exemplo), a Dinamarca e, depois, os países asiáticos. Questiono-me se o programa da Matemática não é demasiado ambicioso para a capacidade cognitiva de uma maioria dos alunos, nesta faixa etária. Creio ser necessário esclarecer, com rigor, este aspeto. Naturalmente, há jovens mais dotados do que outros de inteligência matemática e é necessário encontrar um equilíbrio. Honestamente, querer pôr um aluno entre os 16 e os 18 anos, com dificuldades na disciplina, a estudar 3 ou 4 horas por dia é o mesmo que exigir a um sedentário 3 ou 4 horas de exercício diário. Interrogo-me se os adultos o conseguiriam fazer de forma consistente.

            Os alunos têm outras possibilidades, pensarão. É verdade, mas também têm o azar de ambicionarem, muitas vezes, uma profissão que lhes exige terem Matemática até ao 12º ano e terem de a usar como prova de ingresso, sem que, depois, precisem dela ao longo dos cursos. Acontece com alguns cursos na área da saúde, por exemplo. É um disparate! Haverá real necessidade de um programa que condiciona tanto os miúdos nas suas opções? Num certo fórum, um colega (não sei se seria de Matemática) afirmava que a maioria da população não precisa de saber o que é uma derivada ou uma integral. Eu pensei imediatamente que a mim, tal conhecimento, não me faz falta. Aliás, derivadas, só conheço o processo de formação de palavras (aposto que a malta das matemáticas também não sabe, com rigor, do que falo) e a integral, para mim, no que concerne farinhas, sempre ouvi dizer que é melhor para a saúde! Talvez haja conteúdos dispensáveis que devem ser abordados somente nas Universidades, nas áreas específicas em que, de facto, fazem falta.

            Continuo a defender uma mudança de paradigma na organização curricular, no secundário, à luz do que acontece noutros países europeus. Há um tronco comum de disciplinas obrigatórias, entre as quais, a língua materna, a Matemática, as Ciências, o Inglês, a História, a Filosofia e Educação Física. Depois, os alunos compõem o resto do seu currículo e tanto podem ter Literatura como Física ou dança ou geometria… Enfim, urge uma maior flexibilização dos currículos, mas para o fazer é preciso aferir com rigor quais os programas a implementar e, sobretudo, que sejam compatíveis com o nível de cognição, dentro da faixa etária dos alunos. É um absurdo continuar a ter alunos de humanidades que não gostam de ler, não gostam de línguas estrangeiras nem de Filosofia ou de História e só aí estão para evitar a Matemática. É uma pena que em quarenta anos nada tenha sido alterado relativamente a estas questões. Por que razão um aluno de Ciências e Tecnologias não pode ter Literatura, se for do seu agrado, ou um aluno de humanidades, Biologia?

            Certa altura, expliquei a alunos do 12º ano que fui muito mais feliz a partir do 10º ano, porque não tinha disciplinas de que não gostasse e me causassem calafrios, mas eu sou inteiramente vocacionada para as humanidades. Aliás, é sempre a condição humana que me apaixona. Portanto, a escolha da área foi óbvia. Porém, não tem de ser assim tão estanque. Não há razões para se obrigar os alunos a uma escolha definitiva tão cedo, sabendo-se que estas novas gerações são muito mais imaturas.

            Aos alunos que, ainda, prestarão provas, que a sorte vos sorria! Não se esqueçam: a sorte também dá algum trabalho.

 

Nina M.

           

 

sábado, 12 de julho de 2025

Crónica de Maus Costumes 429

 

Há dias horríveis para serem vividos

 

Propositadamente, deixei passar o tempo. Não liguei a televisão, nesses dias. Normalmente, não ligo e assim me mantive. O que me chegou foi, essencialmente, através das redes sociais, cada vez mais escabrosas, cada vez mais usadas para que pessoas desassossegadas desassosseguem outros, entendendo que podem maltratar a torto e a direito, que podem ser juízes sem formação para tal, numa falta de respeito e de voyeurismo em relação à vida alheia que fere.

Eu quedo-me atónita, interrogando-me. Questiono, silenciosamente, o motivo que conduz a certas posturas de gente adulta, sem que parem um segundo para olhar para si mesmas! Gente tão segura de si e da sua perfeição! Invejável ou talvez não. Foi com gente assim que a Inquisição e a PIDE se fortaleceram. Gente cheia de si, que não vacila um segundo e é muito lesta a fazer juízos de valor sobre tudo e sobre todos, mesmo desconhecendo os contornos e as circunstâncias. Acaso os conheçam… Porventura, alguém os investiu de derradeiros pilares da moralidade alheia? É com essas boas intenções que vemos certos países a criarem a polícia da moralidade e dos bons costumes, que punem mulheres em praça pública por se atreverem a mostrar os cabelos sedosos e, então, se forem adúlteras, mesmo que seja porque se apaixonaram e querem sair de um relacionamento para o qual a sua vontade não foi convocada, são apedrejadas até à morte, pelos próprios pais e irmãos, nascidos, imagine-se de um ventre de mulher! Isto não é cultura! Isto é a barbárie e aceitar esta forma medieval de vida, no século XXI, é cair num relativismo moral ofensivo. Não se indignam as entranhas dos diletos moralistas, com horror, contra estas situações, mas a alegada ausência de Cristiano Ronaldo no funeral do amigo serviu para fazer manchetes, explorar vergonhosamente o que não deveria ser explorado, numa hora de profunda dor que será eterna para os familiares mais próximos, especialmente, pais, esposa e filhos.

Procurei não ler grande coisa, mas as línguas viperinas fizeram-se sentir. Houve três aspetos que me chocaram, para além da morte extemporânea dos irmãos, que todos entristeceu, até os moralistas de plantão: primeiro, a oblituração de André Silva. Parecia e continua a parecer que só o Diogo Jota partiu, quando os pais tiveram a miserabilíssima dor de perder dois filhos. Para estes pais, independentemente de André ser menos conhecido, tem o mesmo valor de Diogo. A dor é a mesma. É muita. É irrazoável. É eterna. Escrevo isto com os olhos rasos de água. Vi o sofrimento de uma colega a quem aconteceu o mesmo. Só de pensar que a vida pode ser madrasta comigo e fazer-me algo parecido, sinto-me falecer. É, portanto, de uma imbecilidade atroz, de uma falta de sensibilidade tremenda e de uma ambição cruel e ensejo de mediatismo falar-se constantemente de Jota e esquecer-se André Silva. O único aspeto positivo disso seria maior sossego para uma possível companheira, esposa ou namorada de André, que não sei se existe. Em segundo lugar, o circo mediático que fazem de um momento de dor, com, ao que parece, as televisões a apontarem as câmaras para o momento das exéquias, fazendo uma cobertura jornalística integral desse momento, controlando quais os craques de futebol que marcaram presença e os que não apareceram. Querer reportar a notícia do funeral seria normal, já não será tão admissível fazer uma cobertura das 10h00 às 17h00, como se nada mais houvesse para dar a conhecer… Só por mera coincidência, iniciava-se também o julgamento de José Sócrates. Um momento de recolhimento, em que a família precisa de silêncio, assiste-se à exploração da dor ad nauseam. Por último, o julgamento imediato de Cristiano Ronaldo por, alegadamente, não ter comparecido. O rapaz foi crucificado instantaneamente. O pior é que Ronaldo seria castigado de ambas as formas. Se tivesse comparecido e houvesse gente falha de juízo (e não falta por aí) ainda invadiriam as cerimónias para arrancar autógrafos e fotografias ao capitão. A própria imprensa haveria de o aborrecer até conseguir umas declarações. Logo, se o fizesse, seria um egoísta, um vaidoso que foi retirar as atenções  e a justa homenagem aos irmãos. Como não compareceu, as críticas surgiram do mesmo modo. É um vaidoso, um arrogante, demonstrou falta de respeito e por aí fora. Até houve aqueles que sugeriam, quais justiceiros encarniçados, a imediata retirada da braçadeira ao capitão. Se Jota estiver assistir a este circo, levará as mãos à cabeça pelo disparate e, sobretudo, pelo facto de as pessoas não perceberem que, neste momento, a única coisa que importa é a dor inconsolável dos seus! Que diabo! É assim tão difícil de compreender isto? Alguém sabe das razões de Ronaldo? Alguém sabe o que ele combinou e conversou com a família de Jota?! Metam-se na vossa vidinha e deixem de ser coscuvilheiros!

Para terminar a minha indignação perante certos comportamentos, lembro que quando a dor é profunda, ninguém quer saber quem está ou deixou de estar no funeral! Tantas vezes as pessoas medicadas, anestesiadas, num cenário de morte inesperada, nem se apercebem das presenças. Muitas vezes, isso é o mais dispensável. A verdadeira cruz da família começa agora. A partir daqui, a presença dos mais íntimos é a indispensável e esta só a eles diz respeito. Não têm de o relatar publicamente. É inadmissível o assassinato de caráter que se faz nas redes sociais com a complacência da comunicação social e a falta de inteligência emocional de uma boa parte que gosta de opinar!

Ao olhar para isto, percebo a bênção do anonimato. Respiro fundo.

 

Nina M.

sábado, 5 de julho de 2025

Crónica de Maus Costumes 428

 

Cortes e cabelo

               Os meus filhos riem-se, muitas vezes, com as histórias de infância dos progenitores. Creio que ficam meio incrédulos com algumas peripécias e, talvez, a cogitar para eles mesmos sobre a veracidade do que lhes é contado, abanando a cabeça, como quem pensa para si que éramos uns pobres diabos, com uma infância deplorável, porque não tínhamos computadores nem telemóveis e que as nossas brincadeiras eram disparatadas e parvas.

               Esta semana, quando a propósito de uma ida ao barbeiro do meu mais velho, lhes disse que na altura em que os tios eram ainda mais novos do que eles, só existiam dois barbeiros na cidade, arregalaram os olhos. Hoje, há um barbeiro em cada esquina.

               Expliquei-lhes que a ida ao barbeiro representava uma tarde perdida. A avó aproveitava a ocasião e levava os dois filhos de uma vez, o que significava chegar à barbearia às 14:00 e ir embora às 17:00 horas, apenas. Tive de lhes explicar o motivo da demora: antes de mais, o cabelo era cortado apenas à tesoura e, na barbearia do senhor Pinto, trabalhavam somente dois barbeiros, o próprio dono e o senhor Emílio. Acontece que este último trabalhava mais com a tesoura no ar, tchic, tchic, tchic, do que no cabelo! A cada cortadela, erguia a tesoura, com toda a sua sapiência, cortando o ar às fatias, enquanto conversava com a clientela! Aquilo era um autêntico fórum onde os homens conversavam sobre tudo, desde a atualidade política, passando por carros e futebol. Talvez conversassem sobre mulheres, se não estivesse lá alguma. Assunto que nunca ouvi, porque sempre que estava presente era na companhia da minha mãe, mulher de família, com os dois filhos rapazes e eu. Ora… Suspeito que fizessem um esforço por dobrar a língua e evitassem certos e determinados assuntos em frente a uma senhora e a sua prole.

               Eu embirrava um bocadinho com o senhor Emílio, homem de metro meio, baixinho e magrito que sempre se metia comigo e jurava que me ia cortar o cabelo igual ao dos meus irmãos! Imediatamente, abanava a cabeça em sinal de desacordo, antes que a sua tesoura, em vez de fazer as acrobacias no ar, viesse poisar sobre a minha cabeça. Ele era o que se podia chamar de pica miolos. Naquele tempo, pousava por lá a Luisinha, a menina adolescente que tinha trissomia 21 e que era apaixonada pelo filho do senhor Pinto, rapaz novo, e a quem o senhor Emílio moía a paciência, porque inventava namoradas ao moço, só para acicatar o ciúme da jovem. A Luisinha ficava furiosa, por o ouvir dizer que o estroina estivera com outra miúda e que a andava a enganar. A menina discutia e zangava-se, amofinava, entristecia e quase chorava enraivecida, enquanto aquele malandro se ria, juntamente com a clientela. Quando via a Luisinha já muito triste e aflita, depois de a aborrecer um bom pedaço, lá acabava por dar o dito pelo não dito e a jurar que só estava a brincar e que o rapaz gostava dela e não tinha mais namorada nenhuma. Num esforço inverso, lá tratava de convencer a rapariguinha e jurar-lhe a pés juntos que o moçoilo só tinha olhos para ela. Nada disso era com maldade. A Luisinha era conhecida e acarinhada por todos. O senhor Emílio é que gostava de lhe torrar a paciência. De modo que com estas conversas com os clientes e atuações, o homem falava mais do que cortava cabelos e fazia a tesoura tinir no ar variadas vezes, antes de se decidir a usá-la na cabeça dos que lá iam. O senhor Emílio tinha, ainda, outro desplante maior… Creio que, hoje, seria demitido por justa causa. Quando se lembrava, principalmente, no tempo do calor, virava-se para o cliente sentado na cadeira, abotoado com a bata, com o cabelo meio cortado e meio por cortar e dizia: “Só um bocadinho… Eu volto já!” Pousava a tesoura sobre a bancada e zarpava barbearia fora. Ia enfiar-se no tasco ao lado, onde pedia um fino para matar a sede e por lá se demorava até esgotar o líquido que se encontrasse no copo. Era menino para fazer isto com todos os clientes que lhe viessem parar à cadeira!

               O mais extraordinário era o silêncio cúmplice do patrão e dos clientes. Ninguém dizia nada ao senhor Emílio, a coqueluche da barbearia e de quem todos gostavam e se riam com a sua boa disposição! Fazia o que lhe apetecia. Não admira, portanto, que a clientela se apinhasse nos sofás e que uma ida ao barbeiro empenhasse uma tarde inteira a uma pessoa.

Eu aborrecia-me de morte, sempre a perguntar à mãe quando seria tempo de irmos embora! Não havia previsão possível.

               Quando o senhor Monteiro se estabeleceu, o terceiro barbeiro, na altura, foi o gáudio e a alegria dos mais apressados. Este oferecia uma nova vantagem… Assim que os clientes alapassem o rabo na cadeira, ele despachava-os em vinte minutos! Escusado será dizer que, ao fim de um certo tempo, os meus irmãos passaram para a tesoura do senhor Monteiro e eu, não sei por que razão, pude deixar de os acompanhar ao suplício, até à altura em que já iam ambos sozinhos, sem precisarem sequer da dileta companhia da mãe.

               O Pinto ainda existe. Negócio que passou de pai para filho, mas agora, sem o senhor Emílio. Sei também que a perda desta ilustre figura descaracteriza e retira o pitoresco ao espaço.

Lembrar-me da barbearia é lembrar-me, sobretudo, do senhor Emílio. Bem-haja por todas as gargalhadas que arrancou, apesar da demora!

 

Nina M.