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sábado, 16 de novembro de 2024

Crónica dos Maus Costumes 395

 

Vítimas do S. Martinho

            As probabilidades de alguém assistir a um jogo de vólei, no topo da bancada e levar com uma bola de hóquei a toda a velocidade, por efeito de ricochete, eram mínimas, mas as coisas acontecem e sucedeu a alguém.

É conhecida a teoria do caos e o efeito borboleta e o que vou narrar exemplifica-a. Bastaria que eu tivesse escolhido ir ver a partida ao invés de corrigir testes, que afinal ficaram por corrigir, e tudo teria sido diferente.

De banho tomado e de pijama vestido, com uns carapins quentinhos, preparava-me para me sentar quando recebo um telefonema do marido a informar que tinha sido apanhado de surpresa por bola de hóquei que lhe acertara em cheio na testa. O impacto foi de tal forma violento que, prontamente, foi chamado o INEM que o conduziu ao hospital. Uma fúria tomou conta de mim… Qual a probabilidade de alguém que assiste a uma partida de vólei, num sítio específico da bancada ser colhido por uma bola de hóquei oriunda do recinto de jogo contíguo, numa trajetória diagonal?! O miúdo que bateu a bola, no treino, desencadearia uma série de acontecimentos imprevistos, gerando o caos, tal como prevê a teoria. O marido não acabou de ver o jogo, eu não corrigi testes, voltei a vestir-me e fui ter ao hospital. Pelo menos, a filha ganhou a partida. Enquanto esperava que ela chegasse do jogo para poder sair tranquila, ele cruzou-se no hospital com vizinhança boa. Valeu-lhe a companhia até à minha chegada.

Inicialmente, a experiência foi algo kafkiana:

- Tem de preencher a ficha. É no outro balcão. Vira à esquerda, ao fundo, novamente à esquerda.

- Certo. Esquerda… Fundo… Esquerda… Boa noite, vinha aqui para…

- Já está fechado. Fecha à meia-noite! Já tenho tudo desligado.

- Foram as suas colegas que disseram que era para vir aqui…

- Ai!… Lamento, mas já fechou.

- (Não lamentas coisa nenhuma, pensei…) E então? Dirijo-me ao outro balcão, outra vez?

- Sim. Elas sabem bem que já fechamos.

- Direita, fundo, direita… Boa noite, novamente! Do outro lado já estava fechado, tudo desligado. Disseram-me que fecha à meia-noite e que vocês sabem…

- Ah! Ainda faltam dois minutos… Pronto… Eu trato disso (disse-o com ar de fastio). Fui interromper a cavaqueira. Como se chama o paciente? E o contacto da senhora?

Colocam-me a fita no pulso e deixam-me entrar… Corredores, seguranças, macas… Um corrupio de gente para trás e para a frente. Ninguém vê quem chega, ninguém vê ninguém. Tive de incomodar… desculpe, precisava de saber onde fica a cirurgia interna… Entra ali, vira à direita, depois… Já não me lembro… Corredores, gabinetes, mais corredores… Lá encontrei… Sentei-me. Levantei-me. Assisti ao curativo e aos pontos que estavam a ser dados. Novo corredor, nova sala, à espera para fazer a TAC.

Não sei qual foi o bater de asas que desencadeou tudo quanto se passou a seguir…

Aproxima-se um sujeito cinquentão bem entrado, bem-arranjado, de boina na mão e cabeça enfaixada… Sangue na parte de trás…

- Então… Eu vou ficar aqui, no meio desta gente toda? – pergunta à enfermeira – enquanto tenta manter a pose de uma certa altivez.

- Pois claro! - responde-lhe – não me diga que está com medo da Covid…

Não percebi o que lhe respondeu… Entrou a resmonear, a falar consigo mesmo, a andar um pouco torto e a entaramelar as palavras… Pegou no telemóvel. Baixinho, quase em surdina, explicava a alguém que estava no hospital, que tinha caído…

 Que grande piela, pensei! Se estivesse aqui a Dona Júlia, diria que se te destilassem o sangue, poderiam fazer vinho do porto! Calei-me. Isto… Com ébrios vale mais o silêncio. Ele tagarelava sozinho…

Feita a TAC, regresso ao anterior corredor. Há que aguardar pacientemente… Nova cadeira. Olho para o relógio… Uma da manhã… Ouço alguém que se aproxima a falar alto, animado… Nariz e braço enfaixados… Parecia um Cristo… Senta-se pesadamente na cadeira. Comentei baixinho: este é comparsa do outro. Vieram da mesma festa… O indivíduo pega no telemóvel e faz uma chamada:

- Mário Jorge! Onde estás, Mário? (falava muito alto) Eu também estou no hospital, mas não te vejo… Ó Mário! Já te pus um processo, pá! A culpa foi tua! Ria-se. Vais pagá-las! Vias!... Olha… Vou pedir 750 mil euros e vou reformar-me… Tenho este braço incapacitado para o resto da vida… Vais, vais…

Talvez o outro tenha sido chamado para fazer a TAC, porque desligou. A esta altura, já me via aflita para permanecer séria… Olhava para o fulano, que já tinha o nariz como uma batata e para a sua boa disposição, fruto do álcool, que o deixava anestesiado… Pega num cigarro.

- Olhe que o senhor não pode fumar aqui.

- Eu sei! Eu vou lá fora e olhe… Se chamarem pelo António Machado… Diga que eu morri! Ele morreu. Diga assim.

Ainda não tem dado meia-volta, apercebe-se do compincha, que saía da TAC e vinha para o mesmo corredor… Numa cena de filme, correm um para o outro…

- Ó Mário! Estás aqui! Até que enfim te encontro! Abraço daqui, empurrão dali… Ouviu-se um catrapum, pás, tás… Os doentes nas camas à espera de serem atendidos a rirem-se como perdidos… O Mário e o António enrolados, em cima das camas rolantes e o enfermeiro, aflito: “então, meus senhores! Isso é para ficar quieto! Ninguém mexe!” Quais adolescentes de idade avançada!

Lá vêm os dois esmoucados abraçados, corredor fora, enquanto o Mário Jorge proclamava para quem o quisesse ouvir que eram vítimas do S. Martinho! Esse malvado!… Param junto de uma senhora que estava com dor, coitada… Ela não se ria… E diz o António: “esta está pior do que eu, olha bem… Coitada… Vai morrer… Amanhã…”

 Por esta altura, eu já tinha perdido a compostura e só me lembrava da crónica que escreveria…

Foi chamado o António Machado. Senta-se o Mário Jorge ao meu lado… Ai! O meu lado diabólico a querer soltar-se e a querer pormenores da história… Não preciso. Mete conversa…

- Que grande livro! – diz-me - Isso… Tem aí livro para dois dias inteiros neste hospital! (Continuava a entaramelar-se todo e, às vezes, não o percebia…)

- Pois tenho - assenti. Tenho tempo.

- Tem alguma coisa? – pergunta-me. Eu, não. E o senhor? Espetou-se aos tombos?

- Pois foi… Eu só queria divertir-me… Isto é o hospital de Penafiel, não é?

- É.

- Sabe dizer-me como posso fugir daqui? Eu já tentei, mas não dou com a saída… Foi a polícia que me trouxe…

- Não pode sair - disse-lhe a sorrir - Agora, tem de esperar pelo resultado da TAC que fez.

- Ó! Eu não queria estar aqui… Não tenho nada… Só tenho aqui uma coisita… Foi a polícia que me trouxe… Eu não gosto de violência nem de incomodar…

- O Mário Jorge levanta-se, entretanto, é chamado novamente. Em cima de uma cadeira, fica o telemóvel, a carteira e o tabaco do compincha António. O Mário liga… liga… Ninguém atende…

02h30. Finalmente, alta! Continuava a rir-me dos episódios e só me lembrava do velho homem de casaco coçado, do conto do Mário Dionísio, que entra no elétrico à pinha e, descontraidamente, começa a assobiar com um à-vontade que deixa os passageiros, inicialmente, desconfortáveis, exceto uma criança e a sua mãe, mas ao longo do trajeto, a descontração instala-se.

Esta dupla de marretas - Mário Jorge e António - tiveram esse efeito nos corredores inóspitos do hospital. O bom vinho de ambos arrancou algumas gargalhadas. A mim, ajudaram-me a passar o tempo. Não li nada, é certo, mas ri bastante. Hoje, ao acordar, pensei nos dois desgraçados e nas dores que deveriam estar a sentir, principalmente, o António, de nariz empanzinado… Ontem, nada lhes doía! Pudera! A anestesia do álcool valeu-lhes… Eram as vítimas alegres do S. Martinho, mas hoje, coitaditos… Não devem estar assim tão felizes…

Penso cá com os meus botões que os homens… Nãaaa… tanto faz terem 16 como cinquenta… Não podem sair sem mulheres, em grupo! Dá-lhes para isto… Malham no vinho e depois esmoucam-se todos!

Que bater de asas terá causado o caos aos amigalhaços foi o que não descobri. Porém, ganhei uma crónica. Estou a pensar pedir a reserva de uma cadeira nos corredores de um hospital qualquer. Tenho a impressão que lá não devem faltar histórias para contar!

 

Nina M.

 

 

 

sábado, 9 de novembro de 2024

Crónica de Maus Costumes 394

 

Vivências e processos

O meu aborrescente decidiu lembrar-me do meu afazer habitual de sábado à noite, ao jantar. “Tens de escrever a tua crónica”, alerta-me. Respondo que sim, mas que ainda nem sabia sobre o que ia escrever… É então que do alto da sua sapiência me diz:

- Ai, ainda não sabes?! Olha, ficas a saber que se queres ser bem-sucedida nisso, tens de fazer um plano… Não é assim… Os outros fazem planos, com tempo…

Estive dois segundos boquiaberta para lhe responder de seguida que… Sim senhor… Vindo dele era um conselho absolutamente extraordinário!… Não fosse o ditado “olha para o que eu digo e não para o que eu faço”, até estaria muito certo…

- Ficas a saber – responde - que eu faço planos para os meus dias… Só que às vezes eles correm mal… por isso detesto quando já tenho tudo pensado no que vou fazer e vocês me vêm inquietar para eu fazer isto ou aquilo…

- Meu menino, digo-lhe, foram muitos anos a ter de te responsabilizar… Como não partilhas os teus planos e não sabemos para o que te vai dar, estamos sempre a alertar-te… Não vás esquecer do que tens de fazer…

A conversa ficou por aqui e como me manda escrever, mas não lê uma linha, nem imagina as vezes que é referenciado… Acabei por lhe dizer que se ele desistir da ideia de engenharia informática pode sempre enveredar por um caminho na comédia…  Porém, ficava absolutamente mais tranquila, porque, finalmente, o meu filho já faz planos, mesmo que saiam gorados, de vez em quando…

A irmã, mais metódica e organizada, olha para ele, encolhe os ombros e abana a cabeça como quem diz que o irmão não tem remédio… Planos já faz ela há muito… Quando não lhe diz que não fosse a idade e o conhecimento das matérias, sente que está mais preparada para ir para a Universidade do que ele, apontando-lhe tudo o que já é capaz de cozinhar…

Eu, que pari estes dois seres tão distintos, vou olhando para ambos com o mesmo amor, a tentar descortinar o que sairá dali. Ela mais pragmática, ansiosa, mexida e briosa; ele mais relaxado, com um sentido de humor peculiar, sem angústias e sem pressas… Ela diz não querer medicina, mas quer algo na área da saúde; ele, para já fala na engenharia informática, mas tem saídas mais artísticas…

No outro dia, fez questão de me dizer que tinha feito uma boa ação que me teria deixado orgulhosa… Já nem me lembro do que foi… Sei que foi prestativo ou que ajudou alguém e lá lhe respondi que esperava que os ensinamentos colhessem os seus frutos…

Olho-os. Ela, sempre mais adulta e despachada. Desde sempre. A Matilde é a menina que aos seis ou sete anos era capaz de preparar o seu pequeno-almoço e o lanche para a escola. A menina que assume as suas responsabilidades e que detesta falhar. Ele, o que se esquecia de todos os recados… Ele… agora mais crescido, mais responsável, mas com tanto para amadurecer ainda…

Eu, aqui, a ampará-los para que possam ser o que quiserem, para voarem em direção ao seu destino, de asa aberta para os receber a cada regresso a casa.

Nina M.

 

 

Porvir

Será que ainda me verás no futuro?

Mesmo velha e um pouco engelhada

Ainda procurarás o encantamento

No meu olhar?...

Mais pardo quem sabe...

Menos esperançoso no brilho...

Será que ainda nos reconheceremos assim

Imperfeitos e tão perfeitos para o outro

Ainda nos veremos os mesmos

Ou seremos estranhos enfiados

Num corpo usado e gasto e velho...

Ainda me contarás histórias 

E dirás: "sempre gostas de histórias"...

Ou me pedirás ainda restos de escrita por ler...

Seremos ainda amantes na confidência 

De um ombro dado depois do amor

E restará ainda o olhar aceso que

Poisa sobre o fulvo amanhecer outonal

Ou sobre o rosáceo céu a despedir-se do sol...

Vejo sempre a partida

Como um ocaso que se tarda de tão belo

[E as minhas mãos vazias do que não tive]

Um desejo de repouso como quem cansa da vida 

e se despede com atrevida elegância

Uma figura ao longe que se afasta devagarinho... 

sem dor nem espanto...

Como quem entra naturalmente em casa

Como quem pisa um paraíso qualquer 

 

 






quarta-feira, 6 de novembro de 2024

O pêndulo


Oscila a vida
Como um pêndulo
Num perpétuo movimento
Num balancear seguro

Ambivalente
Entre a alegria e a tristeza
A paz e a angústia
O desejo e o tédio
O ser e o não ser

A vida é baloiço de jardim
Sob o sol e a chuva
É aquilo que existe
Entre Deus e mim

sábado, 2 de novembro de 2024

Crónica de Maus Costumes 393

 

Diferenças e convivência

               A convivência e coabitação não são fáceis. Há ajustes, tolerância e cedências necessárias perante visões de mundo diferentes e personalidades distintas. Há personalidades que não se ajustam, por mais que as pessoas gostem umas das outras, o que pode dificultar uma convivência sadia.

            Para que duas pessoas possam coabitar ou conviver sadiamente é necessário que, no mínimo, tenham valores e princípios alinhados e gostos semelhantes. Se for para ser amor, então, ainda são necessários mais um pozinhos mágicos de mais alguma, mas isto é o mínimo exigível. A famosa teoria de que os opostos se atraem até pode ser verdadeira, inicialmente, e ter muita piada, mas em algum momento redundará em fracasso. Com o tempo, os opostos afastam-se. Se não é fácil manter a proximidade com quem, de alguma forma, nos identificamos, fará com aqueles com quem estamos nos antípodas!

            Evidentemente, há diferenças superáveis e diferenças insanáveis. Os valores e princípios pelos quais orientamos a nossa caminhada e nos quais assentamos a nossa ética pertencem ao domínio do que não pode ser negociado. Se para alguém o valor da honestidade e da integridade for indispensável, por exemplo, não conseguirá permanecer ao lado de alguém que seja mais flexível e que use da consciência da manga larga em certas situações. Não compactuará com estratégias menos lícitas para alcançar os objetivos pretendidos. Se alguém pauta a sua vida por valores humanistas, não suportará a convivência com alguém muito moralista, mas pouco tolerante e discricionário. Nestes casos, talvez se esteja perante diferenças insanáveis. No entanto, também há as diferenças superáveis, que dizem respeito à personalidade, mas que se pode, com vontade, ultrapassar. Se uma pessoa gosta de dormir até tarde e a outra de se levantar cedo, basta que se respeitem para que nem um nem outro se incomodem mutuamente. Há quem diga que os relacionamentos terminam pelas pequenas coisas e não pelas maiores… Bem, eu entendo que podem terminar por uma infinidade de fatores e também pelas pequenas, porque a convivência é feita de irritações que se vão tolerando: as pequenas idiossincrasias de cada um que cansam ao cabo de uns anos e irritam sempre, mas que estão presentes, porque as pessoas são o que são, inconscientemente e, mesmo que façam um esforço, no sentido de minimizar o que irrita o outro, haverá sempre momentos em que o que se é se torna mais forte. Quando há um comportamento padrão que nos enerva, significa que é da natureza da pessoa e, provavelmente, tenderá a ser repetido, mesmo que seja alguém comprometido e esforçado.

            Perante isto, confrontando-nos com um comportamento ou maneira de ser que nos desagrada especialmente, só há duas atitudes racionais que se pode tomar e uma absolutamente irracional. Pode-se escolher o afastamento, apesar do amor ou da amizade por se entender que aquele tipo de postura só causa tristeza e mal-estar, um desconforto com o qual não se é capaz de lidar e uma angústia à qual se tem de pôr fim, a bem da sanidade mental. Isto é uma escolha racional. Por outro lado, a pessoa pode entender que o comportamento a incomoda verdadeiramente, mas que respeita o outro e ficará ao seu lado, esperando ver um esforço para minimizar o problema, não deixando de a apoiar e de estar ao seu lado. É também uma escolha racional e válida e que deve ser respeitada. A irracionalidade está, porém, na escolha de ficar, mas com o propósito de querer mudar o outro à força, por coação, manipulação, violência, seja o que for… Acontece que quem o faz torna-se numa pessoa tóxica, que exige do outro o preenchimento das suas necessidades e vazios. Ninguém é obrigado a suprir as necessidades do outro. Esse é um papel que cumpre a cada um em relação a si mesmo e não é justo que se queira mudar alguém, apenas para ver as suas necessidades atendidas. Todos temos o direito de não aceitar ou de não tolerar certos comportamentos, mas ninguém tem o direito de manipular nem de tentar colonizar o outro, tentar transformá-lo no que não é, na base da discussão e da força. O máximo que se pode fazer é tentar chegar a um entendimento confortável para ambos, se houver razoabilidade.

            Há pessoas matinais e pessoas notívagas. Há quem acorde a cantar de manhã e quem não suporte a cantoria nem nenhum barulho matinal. Há que respeitar essas personalidades que acompanham as pessoas ao longo da vida. Não adianta querer obrigar aquele que gosta de prolongar um pouco mais o sono a levantar-se cedo nem obrigar o que gosta de se levantar a permanecer na cama. Não se pode obrigar o outro a ser o que não é por mero capricho ou forma de encarar o mundo. Não adianta pedir ao ansioso para ter calma nem ao calmo para se apressar. Há que respeitar os tempos de cada um, desde que cada um cumpra com as suas obrigações nos prazos necessários.

            Enfim, sem estes reajustamentos e adaptações, a vida em sociedade torna-se infernal e é preciso que nos lembremos sempre de que o outro tem direito a ser quem é e o máximo que podemos fazer é escolher entre ficar, com uma dose extra de paciência para gerir as diferenças ou partir se as considerarmos insanáveis. Só não vale a pena querer mudar um comportamento padrão, porque, no final, ninguém muda ninguém e o desgaste é tremendo para ambos.

            Há, por isso, quem afirme que o amor é uma escolha diária e, a partir de uma certa altura, percebe-se claramente que também é isso.

 

Nina M.

           

 

sábado, 26 de outubro de 2024

Crónica de Maus Costumes 392

 

Memórias musicais

 

               Esta semana, não trago à cena nenhuma mulher que se tenha destacado na sociedade nem falarei dos incidentes da Cova da Moura, dos problemas sociais que afetam o bairro desde sempre, da criminalidade a ele associada, da morte infeliz do habitante, do homicídio perpetrado pelo agente, que acredito ter sido fruto de uma reação precipitada, no meio de acontecimentos que elevam terrivelmente os níveis de ansiedade. Há horas do Diabo e aquela foi uma delas…

Lamento pesarosamente os ferimentos do motorista do autocarro, que apenas fazia o seu trabalho, e ficará com marcas para a vida. Lamento a situação em que se encontra o agente, porque há erros que saem caros, mesmo que possam existir circunstâncias atenuantes… O inquérito apurará os factos. Com ou sem negligência, a sua carreira termina aqui. Lamento a morte de um ser humano, lamento a destruição e os danos causados a terceiros que ficam sem as suas viaturas e com prejuízos tremendos… Sabe Deus da vida de cada um, lamento pelos habitantes do bairro, por aquelas pessoas honestas e trabalhadoras que se veem a braços com esta violência e apenas querem paz. Indigno-me com o aproveitamento político que alguns abutres tentam retirar de toda esta infelicidade, sem pudor e com uma desfaçatez torpe… Mas não quero falar sobre isto…

Morreu Marco Paulo, um ícone da música ligeira portuguesa. Confesso nunca ter sido propriamente uma fã, mas também confesso que sei muitas das suas letras. O cantor era idolatrado por muitos portugueses e sabia ser grato por todo o carinho com que o tratavam. Lutou variadas vezes contra o cancro. Saiu vencedor nas anteriores, mas desta vez, o mal foi mais forte. Ao que parece, terá partido em paz, ao lado dos que amava.

O artista traz-me memórias de infância que explicam o motivo de saber de cor muitos trechos das suas letras, associadas a recordações felizes. Ouvir Marco Paulo significava passeata em família. Havia o carro onde a canalha se misturava. Neste caso, eu passava para o carro da minha madrinha e fazia a viagem com os meus primos… Eis que o pai deles, já era da praxe, sacava da cassete do marco Paulo e aquilo era música até enjoar… era a “Anita”, o “Ninguém, ninguém”, “os dois amores…” Quando acabava o lado B, era ejetar e pimba: lado A novamente!

E a viagem lá se ia fazendo com o pai dos rapazes a gabar a voz do Marco, a dizer que era o melhor cantor português e nós a desdenhar um pouco daquilo e a achar que era música para velhos… O problema era que no carro do meu pai não era melhor… Ou levávamos com o Fado do Frei Hermano da Câmara ou com a banda musical do Marco de Canaveses, onde o meu pai tinha sido músico… Certo é que não me lembro das letras do frei Hermano da Câmara… Ao contar isto aos meus filhos, a propósito da notícia do cantor, o Rodrigo sai-se com esta: “e olha que a banda não é assim tão má, porque eu também ouvi essa cassete toda… O avô punha-nos no carro a ouvir a banda, quando éramos pequenos!”

O meu filho com três anitos sabia as músicas do Padre Borga, porque a tia punha-lhe também a cassete e ele cantava aquilo tudo! Certa altura, na rua de Santa Catarina, ele cantava como se não houvesse amanhã! Sorte a dele que é afinado… Se saísse à mãe estaria desgraçado… Não me lembrei, na altura, de lhe colocar um chapeuzinho, porque os transeuntes riam-se à brava com ele!

Certo é que o Marco Paulo fará parte das memórias de muitos. Li um texto de Rui Couceiro, o editor da Lello e também escritor, autor do “Morro da Pena Ventosa”. Narrava a experiência de ter ido a um concerto do artista no Coliseu e o quanto se divertiu. Bem, eu nunca fui a um concerto do Marco, mas dizem os que foram que energia não lhe faltava e nem entrega ao seu público.

Goste-se ou não do estilo, certo é que Marco Paulo inscreveu o seu nome no panorama musical português e, na verdade, tinha uma voz inconfundível.

Descanse em Paz!

 

Nina M.

 

           

sábado, 19 de outubro de 2024

Crónica de Maus Costumes 391

 Mulher para lá do tempo

               Tenho vindo a falar, nas últimas crónicas, de mulheres que deixaram a sua marca. Hoje, Natália Correia andou a bailar na minha mente. Uma figura feminina incontornável da cultura e também da política portuguesa.

               Natália era açoriana, nasceu em Ponta Delgada, mas mudar-se-ia para Lisboa. Era uma intelectual que vivia para tudo o que toca o espírito: a beleza, o amor, a arte, de forma livre e torrencial. Uma mulher de paixões que não suportava a mediocridade e a mesquinhez, para quem a liberdade era o “valor mais estimável da vida”, por ser indispensável à criação e esta, o “corolário de uma existência”, palavras suas. Era absolutamente corajosa. Opunha-se, abertamente, ao regime bafiento de Salazar e viu a sua Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica censurada, por ofensa aos bons costumes. Provocadora, afirmava que o volume continha “a poesia maldita dos nossos poetas”. Os exemplares da primeira edição, com ilustrações de Cruzeiro Seixas, foram apreendidos ao cabo de três dias e a escritora, o editor e alguns dos poetas representados foram processados e condenados num julgamento que se arrastou ao longo de mais de seis anos e que terminou, de forma simbólica, com alguns exemplares a serem queimados. Os canalhas opressores sempre queimam os livros e não suportam a poesia, porquanto esta seja a expressão mais elevada da liberdade e da criação. Enquanto decorria o julgamento, as leituras clandestinas da antologia continuavam, já que o editor portuense, Ribeiro de Mello, tinha planeado uma reedição pirata, desde sempre, por prever, precisamente, a apreensão dos livros.

               Natália tinha a coragem de não deixar nada por dizer. Dona de uma verve e de uma presença encantatória, intimidava homens feitos com os seus remoques, fustigando-os com palavras caso lhe desagradassem. As pequenas e maldosas coisas e pessoas deixavam-na perdida, enquanto as grandiosas coisas e pessoas a galvanizavam. Era exuberante, audaz, um vulcão em erupção, como a própria diz “sou da ilha das línguas de fogo” e, portanto, é uma dessas existências raras desinteressada do mediatismo e das convenções sociais, destinada a tornar a vida mais bela e mais livre, para quem o bem é o belo e o mal, o feio.

               Um ser como Natália não passa modestamente pela vida… Despertava facilmente paixões e, segundo Maria de Santa Cruz, professora de Literatura, viu alguns jovens debaixo das mesas a beijarem-lhe os pés, apaixonados, no seu Botequim, criado em 1971. Este espaço tornou-se a sala de visitas da poetisa, onde ela declamava, cantava, acompanhada ao piano, e onde se conspirava e aspirava a um Portugal novo. Quem quisesse saber o que se passava em Portugal, teria de passar pelo Botequim, que acolhia enormes figuras da cultura e da política portuguesas, mas também estrangeira.

               Paradoxalmente, esta mulher extraordinária, rebelde, portadora de uma lucidez implacável, mas também caprichosa, que gostava de ocupar a cena e de ser ouvida, era a mesma mulher frágil que não conseguia dormir sozinha em casa, inconsequente, no que ao pragmatismo da vida diz respeito. Vivia numa bolha própria, presa às coisas do alto, sem se importar com as minudências da vida. Natália não cozinhava, não fazia contas, não sabia gerir uma vida… Após a morte de Alfredo Machado, com quem foi casada trinta anos, o terceiro dos seus maridos, de certa forma, uma figura paterna que “tomava conta dela”, acabou por ter de vender o Botequim. A indisciplinada e mordaz Natália foi também deputada da Assembleia da República, tantas vezes, em part-time, por não acordar a tempo das sessões da manhã. Facilmente se incorre na injustiça de fazer uma caricatura de Natália como a mulher de oratória fácil e inflamada, rebelde, sarcástica, exuberante, de figura voluptuosa e sempre de boquilha, pronta a largar um chiste, mas ela foi mais do que isso: uma intelectual corajosa, uma mulher inteligentíssima e frontal, sem medo de dizer o que pensava numa época cinzenta, moralista, assaz hipócrita, em que a liberdade, incluindo a de expressão, não era permitida - não teve pejo em erguer a voz contra o regime e, mais tarde, dizer que as expetativas do povo tinham sido goradas, o que desagradou a extrema-esquerda, nos tempos quentes do PREC. Ora, foi precisamente essa bandeira que Natália empunhou bem alto, antes e após 25 de abril, quer na sua poesia, que não se integra numa escola literária, quer nas suas posições políticas, porque nunca subjugou o seu pensamento ao partidarismo, quer na própria vida, por nunca ter vivido presa a convenções sociais e sempre ter feito o que a sua consciência e moral lhe ditavam. Como a própria explicou, a sua moral tem o seu fundamento na estética, desprezando a piedade pelo miserável arrependido. Não há bem nem mal, antes o nobre e o vil. O nobre faz o bem e este é belo, tal como o mal é feio. Acredito que, naquela época, a tivessem visto como uma libertina, porque a sua insubmissão, exuberância e liberdade seria uma ofensa para os que se deixam domesticar.

               Impossível não admirar Natália! Seguramente, uma mulher à frente do seu tempo.

 

Nina M.