Vítimas do S. Martinho
As
probabilidades de alguém assistir a um jogo de vólei, no topo da bancada e
levar com uma bola de hóquei a toda a velocidade, por efeito de ricochete, eram
mínimas, mas as coisas acontecem e sucedeu a alguém.
É conhecida a teoria do caos e o
efeito borboleta e o que vou narrar exemplifica-a. Bastaria que eu tivesse
escolhido ir ver a partida ao invés de corrigir testes, que afinal ficaram por
corrigir, e tudo teria sido diferente.
De banho tomado e de pijama vestido,
com uns carapins quentinhos, preparava-me para me sentar quando recebo um
telefonema do marido a informar que tinha sido apanhado de surpresa por bola de
hóquei que lhe acertara em cheio na testa. O impacto foi de tal forma violento
que, prontamente, foi chamado o INEM que o conduziu ao hospital. Uma fúria tomou
conta de mim… Qual a probabilidade de alguém que assiste a uma partida de
vólei, num sítio específico da bancada ser colhido por uma bola de hóquei
oriunda do recinto de jogo contíguo, numa trajetória diagonal?! O miúdo que bateu
a bola, no treino, desencadearia uma série de acontecimentos imprevistos,
gerando o caos, tal como prevê a teoria. O marido não acabou de ver o jogo, eu
não corrigi testes, voltei a vestir-me e fui ter ao hospital. Pelo menos, a
filha ganhou a partida. Enquanto esperava que ela chegasse do jogo para poder
sair tranquila, ele cruzou-se no hospital com vizinhança boa. Valeu-lhe a
companhia até à minha chegada.
Inicialmente, a experiência foi algo
kafkiana:
- Tem de preencher a ficha. É no
outro balcão. Vira à esquerda, ao fundo, novamente à esquerda.
- Certo. Esquerda… Fundo… Esquerda…
Boa noite, vinha aqui para…
- Já está fechado. Fecha à
meia-noite! Já tenho tudo desligado.
- Foram as suas colegas que disseram que
era para vir aqui…
- Ai!… Lamento, mas já fechou.
- (Não lamentas coisa nenhuma, pensei…)
E então? Dirijo-me ao outro balcão, outra vez?
- Sim. Elas sabem bem que já
fechamos.
- Direita, fundo, direita… Boa noite,
novamente! Do outro lado já estava fechado, tudo desligado. Disseram-me que
fecha à meia-noite e que vocês sabem…
- Ah! Ainda faltam dois minutos… Pronto…
Eu trato disso (disse-o com ar de fastio). Fui interromper a cavaqueira. Como
se chama o paciente? E o contacto da senhora?
Colocam-me a fita no pulso e
deixam-me entrar… Corredores, seguranças, macas… Um corrupio de gente para trás
e para a frente. Ninguém vê quem chega, ninguém vê ninguém. Tive de incomodar…
desculpe, precisava de saber onde fica a cirurgia interna… Entra ali, vira à
direita, depois… Já não me lembro… Corredores, gabinetes, mais corredores… Lá
encontrei… Sentei-me. Levantei-me. Assisti ao curativo e aos pontos que estavam
a ser dados. Novo corredor, nova sala, à espera para fazer a TAC.
Não sei qual foi o bater de asas que
desencadeou tudo quanto se passou a seguir…
Aproxima-se um sujeito cinquentão bem
entrado, bem-arranjado, de boina na mão e cabeça enfaixada… Sangue na parte de
trás…
- Então… Eu vou ficar aqui, no meio
desta gente toda? – pergunta à enfermeira – enquanto tenta manter a pose de uma
certa altivez.
- Pois claro! - responde-lhe – não me
diga que está com medo da Covid…
Não percebi o que lhe respondeu…
Entrou a resmonear, a falar consigo mesmo, a andar um pouco torto e a
entaramelar as palavras… Pegou no telemóvel. Baixinho, quase em surdina,
explicava a alguém que estava no hospital, que tinha caído…
Que grande piela, pensei! Se estivesse aqui a
Dona Júlia, diria que se te destilassem o sangue, poderiam fazer vinho do
porto! Calei-me. Isto… Com ébrios vale mais o silêncio. Ele tagarelava sozinho…
Feita a TAC, regresso ao anterior
corredor. Há que aguardar pacientemente… Nova cadeira. Olho para o relógio… Uma
da manhã… Ouço alguém que se aproxima a falar alto, animado… Nariz e braço
enfaixados… Parecia um Cristo… Senta-se pesadamente na cadeira. Comentei
baixinho: este é comparsa do outro. Vieram da mesma festa… O indivíduo pega no
telemóvel e faz uma chamada:
- Mário Jorge! Onde estás, Mário? (falava
muito alto) Eu também estou no hospital, mas não te vejo… Ó Mário! Já te pus um
processo, pá! A culpa foi tua! Ria-se. Vais pagá-las! Vias!... Olha… Vou pedir
750 mil euros e vou reformar-me… Tenho este braço incapacitado para o resto da
vida… Vais, vais…
Talvez o outro tenha sido chamado
para fazer a TAC, porque desligou. A esta altura, já me via aflita para permanecer
séria… Olhava para o fulano, que já tinha o nariz como uma batata e para a sua
boa disposição, fruto do álcool, que o deixava anestesiado… Pega num cigarro.
- Olhe que o senhor não pode fumar
aqui.
- Eu sei! Eu vou lá fora e olhe… Se
chamarem pelo António Machado… Diga que eu morri! Ele morreu. Diga assim.
Ainda não tem dado meia-volta,
apercebe-se do compincha, que saía da TAC e vinha para o mesmo corredor… Numa
cena de filme, correm um para o outro…
- Ó Mário! Estás aqui! Até que enfim
te encontro! Abraço daqui, empurrão dali… Ouviu-se um catrapum, pás, tás… Os
doentes nas camas à espera de serem atendidos a rirem-se como perdidos… O Mário
e o António enrolados, em cima das camas rolantes e o enfermeiro, aflito: “então,
meus senhores! Isso é para ficar quieto! Ninguém mexe!” Quais adolescentes de
idade avançada!
Lá vêm os dois esmoucados abraçados,
corredor fora, enquanto o Mário Jorge proclamava para quem o quisesse ouvir que
eram vítimas do S. Martinho! Esse malvado!… Param junto de uma senhora que
estava com dor, coitada… Ela não se ria… E diz o António: “esta está pior do
que eu, olha bem… Coitada… Vai morrer… Amanhã…”
Por esta altura, eu já tinha perdido a compostura
e só me lembrava da crónica que escreveria…
Foi chamado o António Machado. Senta-se
o Mário Jorge ao meu lado… Ai! O meu lado diabólico a querer soltar-se e a
querer pormenores da história… Não preciso. Mete conversa…
- Que grande livro! – diz-me - Isso… Tem
aí livro para dois dias inteiros neste hospital! (Continuava a entaramelar-se
todo e, às vezes, não o percebia…)
- Pois tenho - assenti. Tenho tempo.
- Tem alguma coisa? – pergunta-me. Eu,
não. E o senhor? Espetou-se aos tombos?
- Pois foi… Eu só queria divertir-me…
Isto é o hospital de Penafiel, não é?
- É.
- Sabe dizer-me como posso fugir
daqui? Eu já tentei, mas não dou com a saída… Foi a polícia que me trouxe…
- Não pode sair - disse-lhe a sorrir
- Agora, tem de esperar pelo resultado da TAC que fez.
- Ó! Eu não queria estar aqui… Não
tenho nada… Só tenho aqui uma coisita… Foi a polícia que me trouxe… Eu não
gosto de violência nem de incomodar…
- O Mário Jorge levanta-se, entretanto,
é chamado novamente. Em cima de uma cadeira, fica o telemóvel, a carteira e o
tabaco do compincha António. O Mário liga… liga… Ninguém atende…
02h30. Finalmente, alta! Continuava a
rir-me dos episódios e só me lembrava do velho homem de casaco coçado, do conto
do Mário Dionísio, que entra no elétrico à pinha e, descontraidamente, começa a
assobiar com um à-vontade que deixa os passageiros, inicialmente,
desconfortáveis, exceto uma criança e a sua mãe, mas ao longo do trajeto, a
descontração instala-se.
Esta dupla de marretas - Mário Jorge
e António - tiveram esse efeito nos corredores inóspitos do hospital. O bom
vinho de ambos arrancou algumas gargalhadas. A mim, ajudaram-me a passar o
tempo. Não li nada, é certo, mas ri bastante. Hoje, ao acordar, pensei nos dois
desgraçados e nas dores que deveriam estar a sentir, principalmente, o António,
de nariz empanzinado… Ontem, nada lhes doía! Pudera! A anestesia do álcool
valeu-lhes… Eram as vítimas alegres do S. Martinho, mas hoje, coitaditos… Não
devem estar assim tão felizes…
Penso cá com os meus botões que os
homens… Nãaaa… tanto faz terem 16 como cinquenta… Não podem sair sem mulheres,
em grupo! Dá-lhes para isto… Malham no vinho e depois esmoucam-se todos!
Que bater de asas terá causado o caos
aos amigalhaços foi o que não descobri. Porém, ganhei uma crónica. Estou a
pensar pedir a reserva de uma cadeira nos corredores de um hospital qualquer. Tenho
a impressão que lá não devem faltar histórias para contar!
Nina M.