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terça-feira, 29 de abril de 2025

Dialética

Fala-me da luz dos teus olhos
Do clarão que deles brota
Quando mergulhados na escuridão

Fala-me do canto
Saído da fonte de Parnaso
Cura única para a solidão

Fala-me dos silêncios escolhidos
Pousados sobre um peito
Que se abre à imensidão

Fala-me das ideias mais sublimes
Da beleza que encanta o Ser
Poético e divino

Fala-me do coração aflito
Quando a palavra não chega límpida
E se fecha seco e contrito

Fala-me de tudo e tudo escutarei
Sem reserva e sem pudor
Assim me entregarei

De mim colherás flor
Nesta dialética sadia
De quem faz valer o dia

sábado, 26 de abril de 2025

Crónica de Maus Costumes 418

 

Semana atribulada

             A semana que finda foi cheia. Na segunda-feira, acordámos com a notícia da morte do Papa Francisco. Católicos e não católicos lamentaram a partida de um homem bom. Fica o seu legado.

            O Papa Francisco foi, talvez, o Sumo Pontífice que reuniu maior aprovação, à direita e à esquerda, dentro e fora do mundo católico. A sua simplicidade autêntica, a sua proximidade com o ser comum, os vários testemunhos por ele deixados em relação às pessoas mais frágeis, tantas vezes, vítimas de discriminação: refugiados, migrantes, vítimas de guerra, pobres, prisioneiros, homossexuais, mulheres e crianças… O olhar do Papa era, em primeira instância, para os mais desvalidos e os segregados. Um Papa atento às desigualdades sociais e sem medo de assumir os pecados da Igreja que dirige. Preferia ver uma Igreja exposta às suas fragilidades a ver uma Igreja hipócrita, dizia. O Papa Francisco granjeou a minha profunda simpatia e bem-querença, desde o início, assim que proclamou que a Igreja necessitava de regressar aos primórdios do Cristianismo e à sua simplicidade. Pareceu-me muito acertado. Continuo a pensar o mesmo, porque vejo que a Igreja anda demasiadas vezes afastada da ideia de Deus.

            O pontificado de Francisco fica marcado pela tentativa de modernização e de progresso. Assume a importância das mulheres para a Igreja, concedendo-lhes o direito de voto, no Sínodo, combate a corrupção dentro do Vaticano, olha de frente para o abuso sexual de menores e responsabiliza quem deve, afastando-os. Enquanto tenta varrer a sujeira, acolhe todos aqueles que se deixam sensibilizar pela sua palavra e se lho confessavam, respondia que não falassem dele, mas de Jesus. As palavras eram de Jesus e não dele. Ao vê-lo interagir com as pessoas, adultos e crianças, sentimos que o Papa Francisco deixa cair o modo imperial, o modo monarca a que a Igreja tinha habituado os seus fiéis. Porém, quando Jesus entra na cidade Santa, para celebrar os Ramos, vai montado num jerico, não num cavalo puro-sangue e veste uma túnica simples e calça sandálias e a única coroa que lhe deram foi de espinhos. Também o Papa abdicou de muitas mordomias, desde logo a habitação. Escolheu a residência mais modesta e não o palácio, a cruz que trazia ao pescoço, escolheu a mais simples. Com este despojamento, enfrenta os opositores internos e, num Sínodo, abre a discussão entre conservadores e progressistas com temas fraturantes para a Igreja: a ordenação de mulheres, a aceitação da homossexualidade, por exemplo. Foram dados pequenos passos. Francisco não terá conseguido a revolução que pretendia, mas abriu caminho e foi o primeiro a partir pedra. Por isso o acusam, dentro da própria instituição, de não ser tão democrático quanto parece, pois acaba por decidir à sua maneira, apesar de promover o diálogo e de dizer com o humor que lhe é característico que se reuniam e que muitos deles não se podiam ver uns aos outros, mas era preciso que se reunissem pelo amor a Cristo.

            Ele teria os seus defeitos porque, apesar de tudo, é homem e se todo o homem é falho, Francisco não será exceção. Pode ser, no entanto, que seja menos falho que muitos. De repente, lembro-me de duas situações em que se vê um Francisco irritado, mas quem nunca teve acessos de pequenas iras? Uma ocasião, uma crente segura-lhe a mão com mais firmeza, impedindo-o de continuar caminho e ele castiga-a, tal como se faz a uma criança pouco respeitadora, com umas palmadas na mão. De outra vez, um homem com ânsia de lhe poder tocar, fá-lo desequilibrar, o que lhe custou uma reprimenda. Internamente, nas suas reuniões, seria assertivo o bastante, quando necessário. No entanto, a mensagem que ficará é a de que “a Igreja é para todos, todos todos”. Mesmo assim, basta ler o que surge nas redes sociais para perceber que nem mesmo o Papa se livra de críticas ferozes, de gente em que percebemos um anticlericalismo, nalguns casos mais esclarecido e noutros, primário. Até certo ponto nem será de estranhar, mas que dizer dos que se afirmam cristãos, mas proferem ou proferiram palavras injuriosas contra aquele que tenta seguir Jesus e repete a palavra?! Gente que se diz cristã, mas não acolhe a mensagem de Jesus ou, ainda, gente que tenta instrumentalizar a religião e a fé alheia. Vários líderes mundiais são disso exemplo, mas quando nos questionamos sobre a hipocrisia dos que em tempos insultaram e, agora, na morte, homenageiam, só nos podemos lembrar do “Todos, todos, todos” do próprio Papa, engolir em seco e pedir que saiam das exéquias mais ajuizados.

            Para rematar a semana e coincidindo com o luto, houve abril. Um abril estragado por grupos de extrema-direita que se aproveitam das fragilidades do regime democrático para lançar o caos e o fazer implodir. A generalidade dos portugueses recrimina estas ações. Sobre isto não tenho a mínima dúvida. Não aprecio, porém, que o partido que recentemente conquistou cinquenta lugares na Assembleia não seja capaz de uma mensagem irrefutável de repúdio ao sucedido. Esses senhores não almejam ser conotados com esses marginais, apelidam-se um partido contra o sistema, mas um partido democrático. Ora, se assim fosse, não só repudiariam tais ações como não quereriam ver essa gente associada ao seu partido político. Eu gostaria muito que o seu eleitorado fosse capaz de refletir sobre isso, porque ainda acredito que a maioria das pessoas que o constitui não são racistas nem xenófobas e nem antidemocráticas. São pessoas, essencialmente, movidas pelo medo e pela frustração de não verem os seus problemas quotidianos resolvidos, o que lhes gera uma revolta que procura consolo e o encontra nas palavras que querem ouvir. Genericamente, as pessoas não percebem nada de economia nem de direito. Não querem saber se para incentivar a produção e gerar receita é melhor cortar no IRC ou aumentar os impostos indiretos. Querem é conseguir uma casa a preço decente e que os salários permitam pagar, querem ir ao supermercado sem sentir que precisam mesmo de fazer muitas contas para não ultrapassar o orçamento e não se querem sentir vítimas de injustiça. Querem os seus microproblemas resolvidos, pois são eles ou a sua ausência que lhes ditam uma vida de bem-estar ou de dificuldades. Na falta disto, não havendo uma política de proximidade, tal como fazia o Papa Francisco, não havendo uma política de escuta ativa, porque as pessoas precisam de ser ouvidas e compreendidas, estarão sempre mais vulneráveis aos falsos profetas, aos falsos pastorinhos e às sua pantominas. Não adianta comprovar, numa base de argumentação sólida e factual, o discurso falacioso, uma vez que as pessoas precisam de esperança para sobreviver às agruras da vida e de respaldo para a suas frustrações e é nesses discursos inflamados, mentirosos até ao tutano, irresponsáveis e irracionais, mas que prometem um eldorado justiceiro, que encontram o bálsamo que lhes acalma os sentidos e que julgam encontrar o remédio para as suas dores.

            Melhores dias virão… Não há mal que nunca acabe nem bem que sempre dure, diz o povo e com razão.

 

Nina M.

 

 

 

 

 

 

sábado, 19 de abril de 2025

Crónica de Maus Costumes 417

 

               Ternuras interrompidas

               Amanhã, é Páscoa. Preferia que a crónica de hoje fosse para recordar a minha saudosa tia que, durante a semana que antecedia a festividade, fazia às três dezenas de pães de ló para ela, para os filhos, para a minha mãe, sua irmã, e ainda para as ofertas que todos pretendiam fazer.

Preferia recordar os tempos em que a minha tia o batia com canas debaixo dos braços, em alguidares de barro que me pareciam gigantes, na altura e, no fim, chamava-nos (aos sobrinhos e netos) para raparmos o alguidar e as canas. Andávamos perdidos em brincadeiras, nas proximidades, sempre de olho para ver quando chegava a hora da lambarice. Às vezes também íamos à loja da “Lice”, que deveria ser da “Alice”, mas era assim que dizíamos, comprar folhas de papel almaço para forrar as formas. Sempre me admirei pelo facto de o papel resistir ao calor do forno a lenha, sem arder. Invariavelmente, quando a minha tia retirava as fornadas e levantava a tampa, eis que surgiam as regueifas no seu esplendor dourado, sempre impecáveis! Amarelinhas, feitas de ovos caseiros, obrigatoriamente. As mais bonitas eram sempre para oferta. Lá havia uma ou outra que ficava um bocadinho mais queimada, por cima, e então, essa, seria para consumo doméstico.

Também poderia recordar o tradicional passeio de Páscoa em que as mulheres conseguiam meter a casa na mala do carro: as pingadeiras fartas com o cabrito assado. A minha tia levantava-se às quatro ou cinco da manhã para acender o forno, assar o anho, as batatas e o arroz de forno, enquanto preparava pratos, copos e talheres, embalava tudo e ainda fazia salada. Tudo pronto para que depois da eucaristia pascal, sempre cedo, fosse só embrulhar a comida em jornais para que se mantivesse quente. Logicamente, ainda acomodavam mesas e cadeiras! Depois, à hora do almoço, era só encontrar um lugar arranjadinho onde pudessem montar a tenda!

Os meus filhos que não se lembrem de me pedir tal! Só de me lembrar da parafernália que carregavam, sentencio, de imediato, que vale mais comer no sossego do lar… Não sou grande fã de piqueniques… Se é para levar farnel, uma sandocha está otimamente bem! Detesto tralha atrás de mim! Mas as mulheres davam-se a essas trabalheiras e eram admiráveis!...

Portanto, a crónica tinha tudo para ser a recuperação de boas memórias e um belo motivo para evocar a minha tia (aquela que nunca precisou de nome, porque todos sabemos a quem nos referimos, aquela que herdou o lugar da avó Matilde), aquela de quem todos os sobrinhos gostavam, sem exceção, e de quem todos, estou certa disso, se lembram. E isto é o mais importante quando deixamos de estar cá. As memórias que deixamos aos outros e a saudade. E se quando nos lembramos das pessoas, um sorriso aflora aos nossos lábios, esse ser conquistou a eternidade nos nossos corações. A minha tia é, por isso, eterna, como é a avó Matilde e o avô Tónio, cujas memórias são mais ténues, por ser o meu primeiro morto, tinha eu cinco anos…

O Trump e os seus cães de fila quiseram estragar a ternura da minha crónica, porque não posso deixar de lavar a alma e de alertar para certos perigos, afinal, tal como a azémola do JD Vance anunciou: os professores são o inimigo. Não sou professora em Harvard nem em qualquer universidade, mas se vier a propósito, também eu explico aos alunos o que é um estado democrático e um estado de direito. É aquilo com que Trump pretende acabar. Para os mais distraídos, um estado democrático caracteriza-se pela separação de poderes: legislativo, executivo e judicial. Significa que nenhum presidente pode passar por cima do poder judicial, mas foi isso que Trump fez ao não acatar a deliberação de um juiz, no sentido de suspender as deportações ilegais que estavam a acontecer. Num país, há leis e nem o presidente está acima delas, mas parece que Trump se coloca nesse patamar. O energúmeno tem a desfaçatez de atirar com a justificação falaciosa de que foi eleito, enquanto o juiz não foi escolhido pelo povo. Ora vamos cá ver… Ninguém elege um presidente para que este não respeite o direito democrático de um país. Se a ordem de um tribunal não permite determinado ato, de acordo com a legislação em vigor, o máximo que alguém poderá fazer é recorrer da sentença, não é fazer de conta que ela não existe! Não sei se os americanos estão cientes do que isso significa! Todos os totalitarismos começam desta forma, com presidentes que se acham acima da lei e que esta é aquilo que entendem que deva ser. Foi assim com Salazar, com Franco, com Hitler, Com Mussolini, com Chávez, com Maduro, com Putin… Com Trump! Outro sinal gravíssimo é a tentativa de moldar pensamento e de perseguir aqueles que não leem a mesma cartilha. As Universidades querem-se de pensamento livre, diverso e plural, sem pressões do Estado, no sentido de induzir o pensamento único. Sempre foi assim e, neste momento, os verdadeiros republicanos só podem estar envergonhados. Os democratas acredito que se sintam revoltados e angustiados, os republicanos funcionais só podem sentir vergonha alheia! As Universidades não se vergaram e ainda bem! Ao que parece, 75% dos intelectuais que fazem investigação nos Estados Unidos da América afirmam querer abandonar o país, tal é a falta de decoro do presidente e dos que o rodeiam. Eu acho que fazem muito bem e tenho a certeza de que a Europa os acolherá com muita satisfação! Se os Estados Unidos da América são pioneiros em muitas matérias, devem-no aos seus investigadores e cientistas! São eles o progresso, o desenvolvimento e o enriquecimento de um país! Não compreender isto é ser-se de uma ignorância sem limites e confrangedora!

Eu esfrego as mãos de satisfeita, porque creio que a Europa só terá a ganhar com essa migração. No século XXI acontece o inverso do que foi no século XX: a inteligência europeia mudou-se para os Estados Unidos por força dos regimes totalitários. Atualmente, o movimento será ao contrário.

Provavelmente, haverá uma recessão económica se Trump insistir nestas guerras comerciais. A fatura será paga pelo cidadão americano, quer tenha ou não votado no narcisista que ocupa a Casa Branca. Talvez não seja mau, porque a única forma de o travar é através da implosão e esta só se dará com uma forte queda na economia, quando os americanos derem conta do aumento substancial do custo de vida, já que esse povo só conhece a cor do dinheiro. Não deixam de me espantar os que elegem alguém que promove uma invasão ao Capitólio, ação que causou a morte de alguns; alguém que se acha no direito de não cumprir a lei do país; alguém que apresenta discursos imperialistas e expansionistas inaceitáveis, com ideias de jerico com a mania de que é cavalo; alguém que apresenta comportamentos persecutórios face à elite intelectual do seu país… Tenho esperança que caia e será ele mesmo, com as suas ações, a implodir o Governo. Até lá, o mundo sofre, mas os americanos sofrerão mais. Talvez precisem de aprender com a experiência, já que parecem ignorar todos os sinais de alerta há muito escancarados!

Uma Santa Páscoa para todos!

 

Nina M.

 

sábado, 12 de abril de 2025

Crónica de Maus Costumes 416

 

Um par de meias de lã

               Escrevo em modo confortável. Antes de me sentar, visto o pijamas e calço as meias de lã que impedem que os pés arrefeçam. Olho-as. São industriais. Ainda assim recordam-me a minha avó.

            Ela tricotava meias e aproveitava o resto dos novelos, no tempo em que as mães tricotavam as camisolas dos filhos, à noite, depois de jantar (que era sempre cedo) e de arrumar a cozinha. Agarravam nas agulhas e lá estavam um pedaço entretidas, com o fio sobre o pescoço, numa espécie de jugo, e o pedaço feito de camisola a escorregar-lhes sobre o regaço. Enfiavam as malhas cada vez mais apertadas pelo peso, com as agulhas pontiagudas e pesadas, num movimento sincopado e síncrono, quase automático. Nem precisavam de olhar, que a agulha sabia o caminho. Enfia a agulha direita na malha da esquerda, dá a laçada com a ajuda do polegar e puxa, a fazer mais uma malha, ponto de meia. Todas as mães sabiam fazer isto de cor, enquanto viam a Gabriela ou a Vila Faia. Quase todas as minhas camisolas foram feitas assim… Lembro-me particularmente de uma em tons de rosa velho, com tranças, um casaco branco-sujo, que formava umas rosinhas em relevo, trabalho minucioso e difícil, e de uma vermelha com uma girafa, dentro de uma cerca. Se não estou enganada, esta foi feita pela minha professora, amiga da mãe, a Dona Esperança. Estes trabalhos mais difíceis e minuciosos de contar malhas e meter outras cores pelo meio, na construção de um desenho específico seriam, talvez, mais difíceis para a minha mãe, que se lamentava da falta de jeito. A minha tia, também ela tinha aprendido o ofício de tecedeira com a mãe, minha avó, lia esses esquemas com muita facilidade. Habituada a montar teias não seriam as malhas que a atrapalhavam…

            Eu ainda aprendi a tricotar e a fazer ponto de pé e o croché, por insistência da avó, para quem as meninas deveriam ser prendadas e saber essas coisas e costura também… Mas… Não sei que diga… Nunca gostei nem tive paciência para esses lavores… Não me davam prazer nenhum… Depois de muita insistência, lá me arranjaram um farrapo com uma maçã passada a químico, que a muito custo bordei em ponto de pé e acho que já nem sei fazer… Eu queria lá saber do bordado… Preferia andar a correr pelos montes, perdida nas brincadeiras, a trepar os castelos de madeira ou a brincar às casinhas com as vizinhas. A partir de certo momento, pararam de insistir nessas ideias… Eu sempre achei que não iria precisar de saber isso para nada… Ou perceberam que não valia a pena a insistência, que ali não havia lura de onde saísse coelho… É assim até hoje.

De modo que a minha avó Matilde fazia o aproveitamento das lãs que sobravam das camisolas para fazer meias que aqueciam bem os pés no inverno. De alguma maneira, devemos ter chegado a um acordo tácito: nem ela me ensinava a tricotar nem eu insistia com a minha ideia de a ensinar a ler, porque ela sempre me dizia: “Ó filha! Agora não vale a pena! Burro velho não toma andadura!”

Ocorre-me, agora, de repente, que não me lembro de ver a minha avó a rir! Nunca a vi a rir, mas ouvia-lhe amiúde que “muito riso pouco siso!” Era uma mulher austera e de poucas falas. Comunicava o indispensável. Tinha a sabedoria de intuir que as palavras não devem ser desperdiçadas à toa. Não permitia a má-língua sobre ninguém, atalhando com um “cada um sabe de si e Deus de todos”. Todos lhe obedeciam, sem que ela tivesse de falar muito e muito menos gritar.

Houve um dia um episódio… Não sei porque me vem, agora, à memória, ou melhor, sei… Eu nunca me desculpei com ela e nem ela estaria à espera disso. Já não sei o motivo, mas a avó lá não me deixou fazer alguma coisa, certamente. Sei que eu fiquei muito furiosa, mas muito enraivecida e no meio da questão, irada, deixei escapar um “também havias de morrer e de partir as duas pernas”. Assim que me saíram semelhantes palavras, inundou-me a angústia. Eu não queria nada que ela morresse nem que partisse o que quer que fosse, mas estava dito e não havia forma de desdizer. A minha avó lá me repreendeu a perguntar-me se isso era coisa que se desejasse à avó e que Jesus estaria tristíssimo comigo. Eu teria sete ou oito anitos, não sei precisar. Muito contrita, fui carpir mágoas, com os olhos rasos de água, arrependidíssima, porque me pesava a consciência e a alma, a explicar interiormente a Jesus que não falava a sério e nem sabia como tinha acontecido, mas quando dei por mim, as palavras já tinham saído.

Não tinha a sorte, na altura, de conhecer os Evangelhos Apócrifos… Ninguém mos tinha dado a ler nem o professor Frederico Lourenço tinha feito a sua tradução… Tinha apenas um Novo Testamento para crianças, cujas parábolas lia e relia e já sabia de cor e salteado. Juntamente com os livros de “Os Cinco” era o que havia e o que fazia as minhas leituras. Se eu soubesse que o próprio Jesus, segundo Tomé, em criança, tinha tido as suas birras e os seus caprichos, ter-me-ia sentido aliviada. Afinal, se o próprio jesus, irritado, disse a um menino que se esbarrou com ele, indo contra o seu ombro: “Não continuarás o teu caminho.” Logo o menino caiu e morreu. Ora… Eu que tinha sido apenas uma imprudente desbocada, sem qualquer poder divino, não viria mal ao mundo… Claro que a criança divina, depois, desfazia as suas perrices, mas que as tinha, também, seria certo, pois afirma Tomé: “E ninguém doravante ousava encolerizá-lo, para que ele o não amaldiçoasse e estropiasse”.

Os meus dez por cento demoníacos divertem-se imenso com este lado pouco angelical e caprichoso de um Jesus petiz, que deve ter aprendido a controlar os seus ímpetos. Saber disto, na altura, ter-me-ia servido de consolo, porque o remorso não me largou até adormecer, nessa noite. Felizmente, no dia seguinte, eu e a avó já nos tínhamos esquecido do triste episódio. Não tenho de memória, mas poderei jurar que, no dia a seguir, terei andado na linha sem a aborrecer muito… Excetuando a hora de almoço, que era sempre um castigo e que ela me subornava com o que apelidava de refrescos de vinho. Obviamente, uma gota de vinho, um copo cheio de água e açúcar. Era doce e eu gostava, mas só podia beber quando terminasse de comer… Demorava séculos! Nunca tinha fome! Eram os refrescos de vinho da avó e as metades de pão com açúcar da tia Alexandrina! Já não uso açúcar em nada (com exceção de bolos) desde os meus vinte e cinco anos, mas aqueles pães da infância, eram um consolo!

Da avó Matilde tenho uma colcha por ela tecida e os seus brincos, com que sempre a conheci, sem que nunca os tivesse tirado. Nem para dormir a avó tirava os brincos. Não tenho, porém, nenhum par de meias de lã que tenha sobrado nem avó que as possa tricotar.

Nina M.

sábado, 5 de abril de 2025

Crónica de Maus Costumes 415

 

Redes Sociais e ignomínias inaceitáveis

            Acabei de ver um programa interessantíssimo sobre redes sociais. Nada de muito novo em relação à forma como os algoritmos funcionam, que vão alimentando a nossa curiosidade, noutros casos, alimentando a falsa sensação de companhia, criando a ilusão de que a solidão e o vazio não bate à porta.

            Muito se tem falado da responsabilidade ou da falta dela em relação à ausência de regulação nas redes sociais. Ao que parece, desde as eleições dos Estados Unidos da América, em 2020, a situação tem vindo a degradar-se. Elon Musk despediu imensa gente na sua rede social, funcionários que zelavam pela segurança e a quem competia colocar crivo no que poderia ser ou não publicado e replicado. Entretanto, usando a falácia da liberdade de expressão, Musk fez como lhe apeteceu e Zuckerberg seguiu-lhe as pisadas. As leis do mercado e do capital, para esta gente, é sempre mais forte. Interessa-lhes o lucro e nada mais. Tudo o resto são meros danos colaterais e apresentam os seus resultados ufanos e certos da sua meritocracia.

Acontece que Musk é capaz do pior. A ingerência nas eleições dos Estados Unidos, no primeiro mandato de Trump foi reconhecida e a tentativa que fez, recentemente, na Alemanha mostram a sua falta de escrúpulos. Ao abrigo da liberdade de expressão, não se coíbe de permitir que circulem mentiras nas suas rede social, de forma a influenciar o rumo de certos acontecimentos. Fá-lo descarada e impunemente. Ainda assim, permitir que essas coisas aconteçam, mas a responsabilidade não ser sua diretamente, isto é, não ser ele o plantador nem o propagador da falsidade, é mau, porém, ainda se vai condescendendo, agora, quando para além de tudo, é ele também o responsável por espalhar a mentira, já é inaceitável e é inexplicável a ausência de qualquer sanção. Foi o que aconteceu no caso de Southport, em Inglaterra. Alguns muçulmanos estiveram perto de um linchamento, porque começou a circular nas redes sociais que um muçulmano seria o responsável pelo homicídio de uma menina, na localidade. Obviamente, os comentários de ódios, racistas e de incentivo à violência fizeram-se sentir e foram em crescendo, terminando à porta de uma mesquita, com gritos, insultos e palavras de ordem xenófoba. Um motim que exigiu a intervenção musculada da polícia. A notícia era falsa, plantada, comentada e replicada por um grupo de extrema-direita, no X (antigo Twitter). Significa que não há qualquer controlo sobre os conteúdos plantados nessa rede, mas para além disso, o pior mesmo é o comportamento de Elon Musk: não só permite que essas notícias falsas circulem, como ainda as comentou (com palavras pouco abonatórias) e replicou o vídeo. Quase se perdiam vidas devido a rumores plantados com uma agenda específica e os responsáveis pelas redes não sofrem qualquer tipo de reprimenda! Depois dessa manifestação violenta contra os muçulmanos residentes em Southport, a polarização tornou-se mais intensa. Um advogado indiano, viu-se mesmo obrigado a mudar de residência com a sua família e passado uns tempos, as filhas ainda não se sentiam confiantes para saírem à rua, com medo de serem atacadas. Mensagens de ódio aos imigrantes, de apelo a revoluções e a comportamentos selvagens circulam livremente, sem que ninguém se imponha.

            É com consternação que tenho de reconhecer que este tipo de conteúdo tem de ser censurado. Eu que defendo em pleno a liberdade, eu que admiro todos aqueles que tiveram a coragem de se rebelar contra regimes totalitários castradores do pensamento e da propriedade intelectual de cada um, tenho de admitir que há situações que exigem a suspensão da liberdade. Nem lhe chamaria isso, porque usar uma rede social para mentir e instigar o ódio, não é liberdade, mas antes libertinagem. Portanto, nestes assunto, a palavra de ordem, é sim, proibir.

No documentário, uma mãe (pobre coitada) chorava o suicídio da filha, jovem vulnerável, com problemas psicológicos agravados pelas redes sociais. Vieram a descobrir-lhe, no diário, os vídeos que ela via e as constantes alusões ao suicídio com que o seu mural era invadido. A mãe crê que o gesto fatal da filha foi potenciado pela rede social, que nada faz para evitar que este tipo de vídeo circule. Crê que a filha poderia estar viva e revolta-se contra a impunidade de quem troca vidas humanas pelo grupo, olhando para elas como meros danos colaterais.

Perante este cenário pavoroso de violência gratuita nas redes, a Austrália prepara-se para proibir o acesso a redes sociais a menores de dezasseis anos. Eu aplaudo a medida. Haja alguém com coragem de resolver um problema que todos nós já percebemos existir, mas todos fogem, evitam tomar decisões mais drásticas com receio, talvez, de serem apelidados de coisas menos abonatórias.

A par disto, e sem querer abordar o temas dos rankings, a escola pública mais bem classificada, curiosamente, teve a coragem de proibir o uso do telemóvel pelos alunos, nas escolas. Até aqui, ainda considerei que os alunos pudessem apenas deixá-los numa caixa, junto ao professor, mas pelo que vou vendo e lendo, pensando nos prós e nos contras, creio que a proibição traz mais vantagens do que desvantagens. Basta lembrar-nos do caso da semana, da menina de dezasseis anos que foi violada por três marmanjos, cujo vídeo circulou pela Internet, obtendo milhares de visualizações. Que sociedade de trogloditas estamos a criar! Nem consigo imaginar o sofrimento da jovem e dos seus pais. Só de pensar que pudesse acontecer algo de semelhante à minha menina, eu ensandeço, as minhas tripas fervem e nem escrevo o que me vai na alma, porque seria censurada. Cometem o crime e ainda o põem a circular na Internet! E eu sei que os jovens meliantes também precisam de ser intervencionados, mas a primeira coisa que me ocorre é de umas lombeiradas bem assentes (ainda devem existir paus de marmeleiro), para ver se deixam de ser uns pulhas animalescos e se começam a ter princípios decentes! Depois, sim, venham os psicólogos e assistentes sociais e o diabo, que demasiadas vezes protegem quem tem de aprender a viver em sociedade e a ser responsável pelos seus atos. Quanto às pessoas que viram o vídeo, se o replicaram, para essas, só tenho uma palavra: asco! A menina não foi violada apenas uma vez… Foi abusada de todas as vezes que alguém abriu, viu e republicou! Vergonhoso. Absolutamente imperdoável e nojento.

A sociedade está cega. Os jovens estão doentes e os adultos fazem como as avestruzes. A cegueira branca de Saramago chegou e os organismos com responsabilidade assobiam para o lado. Em primeira instância, quando houver novamente governo, sim, gostaria de ver coragem política para proibir o uso de telemóvel por parte dos alunos, durante as aulas. São maiores as vantagens do que os prejuízos. Não atirem a responsabilidade desta medida para a autonomia das escolas. Isto não é um assunto para cada escola decidir. É um problema social ao qual se deve pôr cobro. Grande parte da indisciplina existente na escola ficaria atenuada. Não tenho a mínima dúvida sobre isto.

 A minha esperança é que com os telemóveis se vá, também, a alienação em que esta juventude vive, em que nada lhe interessa, nada sabe e nada quer aprender, em que os ídolos são os idiotas dos “influencers” (cada um mais parvo e mais ignorante do que o outro) em vez de apreciar o verdadeiro conhecimento e a verdadeira aprendizagem. Obrigá-la a pausar, a cultivar-se e a interagir olhos nos olhos, para ver se a empatia, que anda moribunda, não falece de vez.

 

Nina M.